O som de um trovão caindo me acordou. Quando me sentei para olhar a hora, senti uma dor terrível pelo corpo todo.
Tive tremores e dor de cabeça. Uma sensação de moleza, em que até para mover um dedo exigia um imenso esforço, tomou meu corpo.
Eu não conseguia me lembrar muito bem, mas senti como se tivesse sonhado com um parque de diversões novamente. Talvez tivesse mergulhado naquela nostalgia infantil após passar por um choque severo.
De volta ao meu sonho, alguém estava segurando minha mão. E, por alguma razão, enquanto caminhávamos, muitas pessoas por quem passávamos olhavam em nossa direção.
Havia algo em nossos rostos? Ou será que nossa presença não era adequada ao local? De qualquer forma, só balancei minha cabeça para dizer “Vão em frente; acham que eu me importo?”, e puxei ostensivamente a mão da outra pessoa.
Foi aí que o sonho parou. O som de uma orquestra mecânica continuou soando em minha mente.
De repente, tive uma ideia. Talvez não fosse a segunda, nem mesmo a terceira vez que tive aquele sonho. Era familiar demais. Devia ter tido o mesmo sonho várias vezes, e simplesmente esquecido dele.
Eu desejava tanto assim um parques de diversões? Ou será que isso apenas representava uma juventude insatisfeita, simplesmente se manifestando como um parque de diversões?
Os ponteiros do relógio apontavam para o 2. Nuvens espessas cobriam o céu, tornando-o escuro o suficiente para fazer qualquer um pensar que era noite, mas na verdade eram 14h, não 2h.
— Parece que dormimos por muito tempo.
A garota, olhando para mim com os cotovelos sobre a mesa e o queixo apoiado nas mãos, acenou com a cabeça em resposta. Sua gentileza da noite anterior se foi, ela estava de volta ao seu jeito de sempre.
Depois de lavar as mãos e o rosto, voltei para o quarto e perguntei:
— De quem você vai se vingar hoje?
Mas então, ela rapidamente se levantou e colocou a mão na minha testa.
— Você está com febre?
— Sim, um pouco. Talvez eu também tenha pego um resfriado.
Ela balançou a cabeça.
— Ser espancado daquele tanto deve ter te causado essa febre. Isso também aconteceu comigo.
— Huh — comentei, também colocando a mão em minha testa. — Bem, não se preocupe, não é como se eu estivesse imobilizado. Agora, para onde devo ir hoje?
— Para a cama.
A garota me empurrou para trás. Com os pés instáveis, facilmente caí com o corpo todo na cama.
— Por favor, descanse até que sua febre passe. Desse jeito você não vai servir para nada.
— Ainda posso ao menos dirigir…
— Dirigir o quê, exatamente?
Finalmente lembrei que tínhamos perdido o carro no dia anterior.
— Com essa temperatura, e essa chuva, você vai desmaiar assim que começar a andar por aí. E você também não vai conseguir usar o transporte público direito. Por hoje, é melhor ficar quieto aqui.
— Você está bem com isso?
— Não posso dizer que estou. Mas não acho que tenha escolha melhor.
Ela estava certa. O melhor plano para o momento seria descansar.
Deitei de lado e deixei toda a energia me abandonar. A garota puxou os lençóis, cuidadosamente dobrados, aos meus pés.
— Desculpe incomodá-la. Mas obrigado, Akazuki — falei casualmente.
— Você pode se desculpar se quiser — disse ela, virando as costas para mim —, mas assim que eu me vingar da quarta pessoa, será a sua vez. Não se esqueça disso.
— É, eu sei…
— E, por favor, não me chame assim. Eu odeio meu sobrenome.
— Entendido. — Achei que soava bem, mas isso a desagradou?
— Bom. Vou comprar alguma coisa para o café da manhã. Precisa de algo?
— Curativos e uma compressa. Mas acho que você devia esperar a chuva diminuir um pouco antes de sair.
— Não faz sentido ficar esperando. Esteja chovendo ou não. — Deixando-me após falar isso, a garota saiu.
Nem um minuto depois, ouvi a porta abrir. Achei que ela devia ter esquecido alguma coisa, mas não era a garota que entrou, mas a estudante de artes da porta ao lado.
— Uau, você, com certeza, está terrível — comentou ao ver meu rosto.
Ela usava roupas de malha aparentemente quentes, o que contrastava com as pernas finas que saíam por sua calça curta e fazia com que parecesse mais magra do que nunca.
— Pelo menos toque a campainha — aconselhei.
— Aquela garota me fez um pedido — informou a estudante com uma pitada de aborrecimento. — Nós nos encontramos no corredor e nos cumprimentamos, então ela caiu em prantos e implorou: “Ele está com febre e sentindo muita dor!”
— Isso é mentira.
— Sim, é. Mas a parte sobre ela me pedir algo é verdade. Foi até o meu quarto e pediu: “Poderia cuidar dele enquanto saio para fazer compras?”
Pensei um pouco.
— Isso também é mentira, não é?
— Não, é verdade. Digo, não é como se eu fosse puxar assunto com ela, sabe?
A estudante de artes se abaixou para olhar meu rosto mais de perto. Então, seu olhar se moveu para minha mão direita, saindo de baixo dos cobertores, e ela soltou um “eca”.
— Isso é um machucado e tanto. Ela também estava com uns bem feios, mas esse parece pior ainda. Não me diga… seu corpo todo está assim?
— A mão é a pior parte. O resto não é lá grande coisa.
— Huh. Mesmo assim, isso aí está bem feio. Espera um segundo, vou pegar um kit de primeiros socorros no meu quarto.
Ela saiu com pressa, fazendo um retorno rápido. Cortou a bandagem encharcada de sangue com uma tesoura e examinou meu dedo mindinho.
— Você lavou isso?
— Sim. Muito cuidadosamente e com água corrente.
— Eu preciso perguntar isso: Não quer ir para o hospital?
— Não.
— Imaginei.
Ela começou a tratar minha ferida com uma perícia clara.
— Você é boa nisso — comentei, olhando para o meu ferimento envolto por esparadrapo.
— Meu irmão mais novo sempre se machucava quando era criança. Eu começava a ler alguma coisa no meu quarto e ele aparecia falando: “Irmã, me machuquei”, e me mostrava a ferida todo cheio de orgulho. Então eu cuidava dele. Mas não é como se alguma vez tivesse aparecido com um ferimento feio assim. Mas não conte isso para ele, já que provavelmente ficaria com ciúmes.
Depois de verificar as condições dos meus outros ferimentos, ela balançou a cabeça e disse:
— Bem. O que diabos aconteceu com vocês dois?
— Nós, cordialmente, caímos das escadas juntos.
— Hmm? — A estudante de artes apertou os olhos com suspeita. — E depois de saírem rolando pelas escadas, você de alguma forma abriu o dedo em dois lugares diferentes como se ele tivesse sido cortado por algo afiado?
— Exatamente.
Ela, sem palavras, deu uma batidinha no meu dedo e sorriu com satisfação ao me ver estremecer com a dor repentina.
— Então, tem algum plano de cair das escadas de novo?
— Não posso dizer que não.
— Vocês dois têm alguma conexão com aquelas duas mulheres que foram esfaqueadas nos últimos dias?
Olhei para a tesoura de costura da garota na mesa – uma coisa extremamente descuidada a se fazer. Mas a estudante de artes não pareceu notar o movimento nada natural de meus olhos. Elogiei-a mentalmente por sua boa intuição.
— Tempos perigosos, hein? Bem, teremos cuidado.
— Vocês realmente não estão envolvidos?
— Infelizmente não.
— Hã… Mas que chato — disse, fazendo beicinho. — Se vocês fossem assassinos que mataram duas pessoas, pensei que também me matariam enquanto estivessem nisso.
— O que você quer dizer com isso? — perguntei.
— Bem, basicamente, se eu descobrisse que você era um assassino, então o ameaçaria. “Não me importa quais sejam os motivos, não posso ignorar um amigo que está saindo por aí fazendo o mal. Vou contar para a polícia!”, diria, e iria até a delegacia. Você tentaria me impedir a qualquer custo, mas minha resolução seria firme, então você decidiria que simplesmente teria que me matar também, e me esfaquearia até a morte, igual quando matou aquelas outras mulheres. E felizes para sempre.
Falei acusadoramente:
— Eu não estava perguntando sobre como isso iria acontecer. Por que você gostaria de ser assassinada?
— A resposta para isso é tão difícil quando para “Por que você quer viver?” — falou ela ao encolher os ombros. — Eu tinha marcado você como outra pessoa que não gostaria de viver. Mas errei? Seus olhos mudaram nos últimos dias. Porque? Aquela garota te deu algum motivo pelo qual viver?
Fiquei em silêncio, então ouvi um barulho na porta. A garota havia retornado.
Entrando com uma sacola de compras, ela observou o clima tenso que preenchia o cômodo e parou.
A estudante de artes olhou para trás e para frente, entre a garota e eu, então se levantou e pegou a mão dela.
— Ei, posso arrumar esse cabelo para você — disse enquanto passava os dedos pelo cabelo da jovem. Então ela sussurrou para mim: — Não se preocupe, não vou morder.
— Confio em suas habilidades de cabeleireira, mas você deve verificar com ela primeiro — aconselhei.
— Você vai cortar meu cabelo? — perguntou a garota sem entender.
— Sim. Deixa comigo.
— Entendo… Obrigada. Vá em frente.
Eu estava mais incerto sobre a decisão do que deixei transparecer, mas decidi deixar isso para a garota. Achei que ela não se importava muito com o cabelo, então foi um pouco surpreendente.
Senti certa inquietação quanto ao que a estudante de artes faria com a garota e o que ela poderia dizer, mas, por outro lado, estava disposto a confiar em sua habilidade e esperava ver o novo corte de cabelo.
De qualquer forma, ver algo ficando mais bonito do que antes era sempre bom.
As duas desapareceram no apartamento da estudante de artes. Coloquei as compras da sacola na geladeira, coloquei Chaos and Creation in the Backyard 1Escute clicando aqui. para tocar no som e abaixei o volume, então me joguei de novo na cama.
Parei de ouvir trovões, mas a chuva parecia ter ficado mais intensa. As gotas da chuva batiam com tudo na janela.
Pela primeira vez em muito tempo, fiquei sozinho.
Como uma criança doente, muitas vezes eu passava as tardes dos dias da semana olhando para o teto ou pela janela, desse mesmo jeito. As tardes chuvosas, quando tirava o dia de folga da escola e dormia o dia todo sozinho, me davam a sensação de estar isolado do mundo.
Às vezes eu começava a me preocupar com o fim do mundo fora da minha casa e, incapaz de suportar o silêncio, ficava ligando a TV, o rádio, o despertador, e todas as máquinas que possuía.
Mas agora, eu sabia que o mundo não acabaria de forma tão generosa, então não saía mais por aí ligando as coisas. Em vez disso, escrevia uma carta.
Eu mesmo tinha praticamente esquecido, mas os eventos dos últimos dias começaram por causa da minha correspondência para Kiriko.
Foi porque rompi relações com ela. E então, muito tempo depois, procurei um reencontro. Pode até não ser a maneira mais adequada de se descrever, mas… A verdade é que, mesmo depois de parar de me comunicar com Kiriko, continuei escrevendo cartas. E se alguém me perguntasse para quem eram, seriam, de fato, para ela.
No entanto, escrevia apenas cerca de duas vezes por ano e, obviamente, nunca as colocava na caixa de correio.
Escrevia quando tinha algo feliz para relatar, ou quando tinha algo triste para relatar, ou até mesmo quando me sentia insuportavelmente sozinho, ou quando tudo parecia fútil.
Para estabilizar minha mente, escrevia cartas sem intenção de mandá-las, até mesmo colocava um selo, depois as guardava em uma gaveta. Eu estava ciente do quanto isso era bizarro, mas não sabia nenhum outro meio para me consolar.
Então pensei em fazer isso, pela primeira vez em algum tempo. Coloquei papel de carta na mesa e peguei uma caneta esferográfica. Não tinha pensado no que escreveria, mas quando comecei a escrever sobre os últimos dias, não consegui parar.
Escrevi sobre dirigir bêbado e atropelar alguém. A garota que deveria ter morrido aparecendo diante de mim, ilesa. Sua habilidade de “adiar”. Sobre sair para ajudar em sua vingança. Sobre como ela apunhalou suas vítimas até a morte usando uma tesoura de costura, sem qualquer hesitação. Sobre as pernas dela fraquejando, ela ter vomitado, sobre perder o sono após seus assassinatos. Sobre como fomos comer e jogar boliche após matar sua segunda vítima.
Sobre o contra-ataque severamente perigoso que sofremos da terceira vítima. E escrevi sobre como, apesar de estarmos ensanguentados e espancados, voltamos para casa sem ninguém nos parar graças ao desfile de Halloween.
— E acho que nada disso teria acontecido comigo se eu não tivesse sentido o desejo de te ver.
Depois de finalizar com isso, fui fumar na varanda. Depois voltei para a cama e tirei um cochilo.
Apesar da tempestade do lado de fora, a tarde correu tranquila. Foi algo quase sagrado.
Se a garota não tivesse adiado o acidente, o que eu estaria fazendo?
Tinha tentado evitar pensar muito nisso, mas não pude deixar de pensar nessa questão enquanto estava sentado e sem nada para fazer.
Se eu tivesse me entregado logo após o acidente, já teriam se passado mais de quatro dias desde minha prisão.
O detetive e o promotor já teriam terminado a investigação, e eu estaria me preparando para o interrogatório no tribunal, ou já teria passado por isso e estaria olhando para o teto de uma cela de prisão.
Entretanto, essa era a previsão mais otimista. Era possível que, no mundo do pós-adiamento, eu já tivesse cometido suicídio há muito tempo. Verdadeiramente desistindo da vida no momento em que atropelei a garota, talvez encontrasse uma árvore robusta por perto e me pendurasse nela.
Era uma cena fácil de se imaginar. Colocando meu pescoço dentro de um laço, passaria alguns segundos pensando sobre o passado e deixaria aquele vazio me empurrar para fora do alcance. O galho da árvore soltaria rangidos por causa do meu peso.
Muita gente acha que é necessário coragem para se suicidar. Mas acredito que só aqueles que nunca pararam para pensar no suicídio é que acham isso. Dizer “Se você tem a coragem para se matar, então poderia aproveitar ela de outras maneiras” é um erro.
O suicídio não requer coragem, apenas um pouco de desespero e um breve surto de confusão. Apenas um ou dois segundos sem saber o que fazer pode resultar em um suicídio.
Resumindo, pessoas com coragem de morrer não cometem suicídio – pessoas sem coragem de viver, sim.
Uma cela de prisão ou ficar pendurado no galho de uma árvore (ou em um crematório). Esse é um pensamento sempre deprimente.
Eu poder estar deitado em uma cama confortável enquanto ouvia minha música favorita era realmente um milagre.
O CD recomeçou a tocar as suas faixas. Assobiei junto com Jenny Wren 2Ouça clicando aqui. de Paul McCartney.
Acabou chovendo durante o dia todo.
Por volta das 18h, acordei com fome. Percebi que não tinha comido nada durante o dia.
Levantei para ir à cozinha, abri uma lata de canja de galinha Campbell que a garota havia comprado, misturei com água e esquentei. Só então, ela voltou.
O cabelo comprido com o qual costumava a associar tinha sido cortado até a base de seu pescoço. Sua franja, que antes ficava quase cobrindo os olhos, embora continuasse longa o suficiente para deixar o ferimento sob o olho difícil de se ver, agora estava mais curta.
A estudante de artes fez um bom trabalho, pensei comigo mesmo, impressionado com a habilidade dela de cortar o cabelo.
A garota percebeu o que eu estava fazendo.
— Eu cuido disso, pode ir deitar — falou enquanto me empurrava para a sala de estar.
Notei que os hematomas em seu rosto haviam sumido. Me perguntei se ela os adiou, mas isso parecia improvável; a estudante de artes provavelmente apenas os cobriu com maquiagem.
— Ela falou algo estranho? — perguntei.
— Não. Na verdade foi muito amigável. Acho que não é má pessoa. Embora o apartamento estivesse um pouco bagunçado.
Pensei em explicar que aquilo, por si só, não era “bagunça”, mas decidi não fazer isso, já que de nada serviria.
— Ficou bom, não é? Uma vez também pedi para cortar o meu cabelo, e ela era consideravelmente melhor do que uma cabeleireira ruim. Ela sempre teve um imenso ódio por salões de beleza, ou, acho, um ódio sem fim de cabeleireiros, então sempre cortou o próprio e acabou ficando boa nisso.
— Por favor, já chega de conversa fiada. Desse jeito a sua febre nunca vai passar.
Poucos minutos depois, a garota apareceu com um recipiente cheio de sopa.
— Obrigado — falei enquanto pegava, mas ela afastou minha mão.
— Abra sua boca — mandou.
— Não, você não precisa ir tão longe…
— Abra a boca. Sua mão está machucada, não está?
Sem tempo para explicar que apenas minha mão direita estava ferida e que não era a dominante, a garota levou a sopa até minha boca. Relutantemente a abri, e ela me alimentou.
Não estava quente o suficiente para queimar a língua, nem era nojento o suficiente para me fazer vomitar. O fato de que a sopa de macarrão com frango estava perfeitamente bem feita me deixou inquieto.
— Não está muito quente? — perguntou ela.
— Só um pouco — respondi.
A garota pegou a colher e soprou antes de levá-la à minha boca. Temperatura perfeita. A colher saiu da minha boca.
Sorve. Engole.
— Então, sobre o seu próximo alvo… — Comecei a falar, mas fui interrompido pela colher novamente sendo enfiada na minha boca.
Sorve. Engole.
— Fique quieto e coma — disse a garota.
Sorve. Engole.
O pensamento de que a pessoa que eu havia matado em meu descuido estava cuidando de mim era mais do que eu poderia suportar.
— Não sou muito adequada para isso, sou…? — A garota perguntou assim que terminei minha sopa.
— Não, acho que você se saiu muito bem — respondi com uma breve hesitação, e ela inclinou a cabeça.
— Acho que você está entendendo as coisas mal. Estava falando sobre a vingança.
— Ah, estava? Achei que estava falando sobre cuidar de mim.
A garota abaixou a cabeça e olhou para o recipiente vazio.
— Para ser honesta… Estou com medo do meu próximo ato de vingança.
— Qualquer um teria medo de matar uma pessoa. Não é só você. — A encorajei. — Além disso, você já matou outras três pessoas. Não pode dizer que “não é adequada” para isso, pode?
Ela balançou a cabeça lentamente.
— Matar aquelas três pessoas me fazem sentir que cheguei ao meu limite.
— Você é bem tímida, hein. Bem, então quer desistir da vingança, esquecer seu ressentimento e apenas viver o resto de seus dias em paz? — falei isso para instigá-la, mas ao contrário da minha intenção, ela pareceu interpretar literalmente. — Bem, essa seria uma escolha sábia, não seria…? Afinal — murmurou ela baixinho —, como você diz, a vingança não faz sentido.
1 de Novembro. Passaram-se seis dias desde o acidente que matou a jovem, deixando-nos além da metade de seu prazo de validade estimado em dez dias.
Apesar disso, ela não começou a se mover pela manhã. Minha febre havia passado e a chuva havia se reduzido a uma garoa, mas logo após o café da manhã, ela voltou para a cama e puxou as cobertas sobre a cabeça.
— Não me sinto bem — disse. — Não vou fazer nada por um tempo.
Era uma doença claramente fingida, e ela não se preocupou em esconder isso, então apenas perguntei:
— Vai desistir da sua vingança?
— De forma alguma… Só não estou me sentindo bem. Por favor, me deixe em paz.
— Entendo. Bem, se mudar de ideia é só falar.
Me sentei no sofá e peguei uma revista de música que estava no chão, então abri na página de uma entrevista de um artista sobre o qual nunca tinha ouvido falar.
Eu não poderia ter me importado menos com isso. Não tinha nenhuma razão para estar apenas relaxando e lendo em uma situação como essa.
Depois de terminar a entrevista de 5 páginas, voltei a ler a mesma coisa desde o início, desta vez contando quantas vezes a palavra “patético” foi usada.
Foram 21 vezes, ou seja, muitas, e também me senti patético por ter contado isso. Eu não tinha nada melhor para fazer com o meu tempo?
A garota colocou a cabeça para fora das cobertas.
— Um… você poderia sair para dar uma volta por algum tempo? Quero ficar sozinha.
— Certo. Quanto tempo?
— Pelo menos umas cinco ou seis horas.
— Se algo acontecer pode me ligar. Há um telefone público lá fora, mas tenho certeza de que a vizinha ficará feliz em emprestar o celular dela.
— Entendido.
Eu não tinha um guarda-chuva, então coloquei o capuz do meu casaco na cabeça, coloquei meus óculos de sol chamativos e saí do apartamento.
A chuva fina como névoa começou a se infiltrar pelo tecido de meu casaco. As pessoas dirigiam com cuidado pela estrada, todas com os faróis de neblina acesos.
Sem destino, parei em um ponto e peguei um ônibus que chegou 12 minutos atrasado.
Lá dentro estava lotado, e a mistura de odores corporais deixou um cheiro rançoso no ar. O ônibus balançava violentamente e, com meus joelhos fracos, quase perdi o equilíbrio em vários momentos. Coisas indecentes tinham sido escritas com letras infantis nas janelas.
Desci em um bairro comercial, mas não pensei muito em como passaria cinco horas por ali – bem, praticamente não pensei. Entrei em uma cafeteria e tomei um gole de café para pensar no assunto, mas nenhuma ideia boa me veio à mente.
Não importa o que eu fizesse, não teria nenhum efeito sobre mim após o adiamento passar. Na verdade, eu estava “realmente” em uma cela de prisão, ou há muito já morto.
Poderia acumular boas ações ou cometer más ações, gastar uma tonelada de dinheiro, mostrar um evidente desrespeito pela minha saúde – e assim que a garota morresse, tudo seria anulado. Era a verdadeira liberdade.
Posso fazer o que quiser, pensei. Então me perguntei: O que eu quero fazer?
Mas não consegui pensar em nada. Não havia nada que quisesse fazer.
Nenhum lugar em que quisesse estar. Não queria nada.
Do que eu gostava no passado? Filmes, música, livros… Talvez tivesse um pouco mais de interesse por essas coisas do que a maioria das pessoas, mas não me sentia particularmente interessado por nada disso, então poderia viver sem.
Talvez gostasse de entretenimento porque, em algum momento, serviu para preencher o enorme vazio dentro de mim. Eu apreciava aquelas coisas para afastar a sonolência e o tédio, era como tomar alguns remédios amargos.
Mas, no final, tudo o que obtive com o esforço foi o conhecimento da vastidão e profundidade do meu vazio.
Antes eu pensava que, quando as pessoas falavam que sentiam um vazio, queriam dizer que existia um espaço que deveria ser preenchido, mas não era isso.
Minha percepção acabou mudando. Isso era um poço sem fundo que faria qualquer coisa que fosse jogada nele desaparecesse. Um nada infinito, que nem mesmo poderia se chamar de “zero”. É isso que tenho dentro de mim, pensei.
E o simples pensamento de tentar preencher isso se demonstrava inútil. Não havia mais nada que eu pudesse fazer a não ser colocar paredes em volta dessa coisa e fazer o possível para não tocá-la.
Ao perceber isso, meus hobbies mudaram de “encher” para “construir paredes”. Passei a apreciar obras que visavam puramente a beleza e o prazer, em vez de obras introspectivas.
Isso não significava que eu era capaz de desfrutar profundamente da beleza ou do agrado, mas isso era preferível a encarar meu interior vazio.
Mas, agora, considerando que eu poderia estar morto em alguns dias, não tinha mais vontade de construir paredes. Eu era como uma criança com um brinquedo novo – não deveria me divertir mais honestamente com ele?
Almocei mais cedo e vaguei pelo distrito comercial, procurando algo que pudesse fazer meu coração disparar.
Notei um grupo de estudantes universitários na calçada oposta. Eles me eram familiares; eram meus colegas de classe, do mesmo departamento.
Contando-os rapidamente, mais de 70% da minha classe parecia estar lá. Pensei em que tipo de reunião poderia ser e concluí que provavelmente haviam concluído um relatório provisório sobre o tópico de sua tese de graduação. Já estava mais ou menos nessa época do ano.
Estavam todos rindo juntos, com o alívio por ter terminado algo expresso em seus rostos. Nem uma única pessoa me notou; talvez tivessem esquecido completamente de quem eu era.
Enquanto me mantinha paralisado, o tempo para eles continuou passando. Enquanto eu vivi dias intercambiáveis, eles amadureceram com as experiências do dia-a-dia.
O fato de que, diante de uma visão tão decididamente indutora de solidão, quase não me machuquei, era indicativo de um problema fundamental.
E fui sempre assim. Se pudesse me sentir magoado com as mesmas coisas que uma pessoa normal, minha vida teria sido ao menos um pouco melhor.
Lembrei-me de que, no meu terceiro ano do ensino médio, havia uma garota por quem eu tinha um breve interesse. Poderia descrevê-la como quieta e ela gostava de tirar fotos.
Aquela garota sempre escondia uma câmera retrô no bolso e a pegava para tirar uma foto sem qualquer motivo ou razão que os outros poderiam entender.
Ela tinha uma câmera reflex de lente única, mas não gostava de usá-la, alegando que “Não gosto de como parece que estou ameaçando as pessoas com ela”.
De vez em quando, me escolhia como alvo. Quando perguntei por quê, ela disse:
— Você é um sujeito adequado para filmes de baixa chroma 3São aqueles vídeos com efeito de filme antigo..
— Não entendo o que isso significa, mas não acho que estou sendo elogiado.
— Não, realmente não é um elogio — concordou ela. — Mas é divertido tirar fotos de você. É igual tirar fotos de um gato que não está nem aí para nada.
Quando o verão acabou, um concurso se aproximou e ela me levou para conhecer a cidade.
A maioria dos lugares que íamos eram frios e desolados – parques cobertos de mato, grandes áreas desmatadas, estações que não recebiam nem dez trens por dia, terrenos abandonados com fileiras de ônibus velhos.
E eu só ficava sentado enquanto ela tirava fotos de novo e de novo.
No início, achei um pouco estranho ter minha imagem semi-imortalizada, mas ao perceber que ela me via de um ponto de vista puramente artístico, isso passou.
Mesmo assim, quando a observei tomando muito cuidado ao arquivar as fotos que me continham, meu coração pelo menos foi comovido.
Quando a garota conseguia tirar uma foto boa, me mostrava com um sorriso infantil que não revelava na sala de aula. O pensamento de que eu poderia ser o único que conhecia aquele sorriso me deixou orgulhoso.
Num sábado de outono com o céu limpo, ouvi dizer que ela conseguiu ganhar um prêmio com as fotos que tinha tirado, então fui até o local de exibição.
Vendo aquelas fotos comigo expostas em uma galeria, pensei: Terei que pagar uma refeição para aquela garota na próxima vez que nos encontrarmos.
Por acaso, a vi em uma loja no caminho para casa. Havia um homem ao seu lado – um estudante universitário, bem vestido e com o cabelo tingido de castanho.
A garota tentou dar o braço para ele, e diante disso o cara meio que revirou os olhos, mas acabou concordando. Sua expressão era uma que eu nunca antes tinha visto. Então ela também pode ficar assim, pensei, maravilhado. Depois de ver os dois se esconderem e se beijarem, saí da loja.
Após o concurso, a garota não falou mais comigo. Eu também não tinha muito o que conversar, já que não seriam necessárias outras fotografias, então também não falei com ela. E foi assim que nosso relacionamento pobre acabou.
E, na verdade, nem me senti magoado. Achei que talvez não estivesse consciente desse fato e que isso iria me afetar depois, mas não aconteceu.
Eu não tentei me harmonizar com isso. Surpreendentemente, assim que a vi com ele, não senti um pingo de ciúme ou inveja. Só pensei: “É melhor não incomodá-los”.
Desde o início, não devo ter pensado que ela seria “minha”.
As pessoas podiam até dizer que eu só estava tentando desviar os olhos disso. Você não vai conseguir nada, então está fingindo que nunca quis nada.
Se isso fosse verdade, então quão bom seria? Se houvesse um desejo fervente crescendo em meu peito, pronto para explodir a qualquer momento – eu simplesmente não perceberia.
Mas procurei tanto por isso dentro de mim, e não encontrei nenhum vestígio disso. Só um insondável cinza.
No final das contas, eu era uma pessoa incapaz de desejar. Tinha perdido essa habilidade há muito tempo, não tinha nenhuma memória de já ter possuído isso. Ou talvez, desde o começo, nunca tive.
E tendo acabado tão facilmente com a única exceção à regra, meu relacionamento com Kiriko, agora não conseguia nem encontrar um uso para mim mesmo.
O que deveria fazer… com isso?
Entrei em um beco e desci uma escada estreita. Lá me deparei com o fliperama em que Shindo costumava gastar todo o seu tempo.
Como se podia imaginar pela placa desbotada, era um lugar cheio de armários que provavelmente eram mais velhos do que eu, então era difícil chamá-lo de “estabelecimento voltado para jovens”.
A máquina de câmbio coberta de fita adesiva, o cinzeiro fuliginoso, os pôsteres queimados pelo sol, os armários gastos nas bordas com suas telas difusas e bipes e boops baratos.
Associei toda essa linha de coisas que já haviam perdido a utilidade, mas estavam sendo desesperadamente mantidas em funcionamento, como se fosse um quarto de hospital gigante. Bem, talvez estivesse mais para um necrotério.
“A razão pela qual escolhi ir para um lugar tão chato”, Shindo me disse, “é porque não sinto nada me incentivando nele.” Comecei a gostar do fliperama pelo mesmo motivo.
Eu não ia lá há meses. Fiquei na frente das portas automáticas e esperei, mas elas não abriram. Havia um aviso na parede ao lado delas.
O fliperama será fechado a partir de 30 de setembro. Obrigado por seus muitos anos de fidelidade. (Observação: o horário de fechamento no dia 30 será às 21h.)
Sentei-me na escada e acendi um cigarro. Acho que alguém tinha derrubado os cinzeiros, já que havia centenas de filtros espalhados pelo chão.
As pontas de cigarro, reduzidas ao filtro marrom, pareciam cartuchos de munição vazios quando encharcadas pela chuva.
Agora eu estava realmente sem qualquer lugar para ir. Deixei o distrito comercial e fui para algum parque aleatório.
Localizando um banco sem encosto, varri a pilha de folhas caídas sobre ele e deitei de lado, sem me importar se alguém me visse. O céu estava cheio de nuvens pesadas. Uma folha de bordo vermelha lentamente dançou no chão, e eu a agarrei com minha mão esquerda.
Colocando a folha caída no meu peito, fechei os olhos e foquei nos sons do parque. O vento frio, folhas novas caindo em cima de pilhas de folhas velhas, pássaros cantando, luvas parando bolas.
Uma brisa forte soprou, deixando cair muitas folhas vermelhas e amareladas sobre mim. Não quero dar mais nenhum passo, pensei. Vou me deixar ser enterrado sob essas folhas.
Essa é a minha vida. Procurando nada, minha alma estourando sem nunca ter se incendiado, uma vida que apodrece progressivamente.
Mas eu ainda não me permitia chamar isso de tragédia.
Terminei as compras e voltei para o apartamento um pouco mais cedo do que o exigido. Caminhei por cerca de uma hora com uma coisa de mais de vinte quilos nas costas, então estava todo suado.
Coloquei aquilo no chão da sala e a garota olhou para ele, tirou os fones de ouvido conectados ao som e me perguntou:
— O que é isso?
— Um piano eletrônico — falei, enxugando o suor. — Achei que você se sentiria entediada sem nada para fazer.
— Não vou tocar isso. Já desisti do piano.
— Ah, então foi uma compra inútil, hein? — Franzi as sobrancelhas. — Você comeu alguma coisa desde que saí?
— Não.
— Você deveria colocar algo em seu estômago. Vou arrumar alguma coisa.
Fui até a cozinha e esquentei a mesma sopa enlatada que a garota me deu no dia anterior.
Ela se sentou na cama olhando pela janela, então me viu segurando a colher em sua direção e me encarou. Após cerca de cinco segundos de conflito, timidamente abriu a boca.
No dia anterior, parecia que ela não resistiria a esse tipo de coisa, mas, pelo visto, era uma história completamente diferente quando a pessoa sendo cuidada era ela.
Quando coloquei a colher em sua boca, a garota fechou os lábios finos, mas macios.
— Não vou tocar aquele piano — repetiu depois de comer a primeira colherada. — E também não estou doente.
— Eu sei. Você não vai tocar. — Ofereci uma segunda colherada.
Mas uma hora depois, ela já estava sentada diante do piano. Pelo visto, não suportaria me ouvir testando o som de cada tecla ao seu lado.
O coloquei diante da cama e ela gentilmente colocou seus dedos no teclado. Depois de saborear esse momento enquanto mantinha os olhos fechados, a jovem aqueceu os dedos enquanto tocava um dos exercícios mais importantes de Hanon 4Os exercícios de Hanon são destinados a treinar a velocidade do pianista, assim como a precisão, agilidade e força de todos os dedos e flexibilidade do pulso., com tanta precisão que ninguém poderia esperar por algo melhor.
O volume estava alto o suficiente para ser ouvido na porta ao lado, mas não era problema, pois imaginei que a estudante de artes toleraria esse tipo de qualidade.
Eu não tinha o melhor dos ouvidos, mas ainda poderia dizer que a garota cometeu alguns erros graves ao usar a mão esquerda. E o toque de sua mão direita era maravilhoso, então o destaque foi terrível.
Sua mão esquerda, paralisada onde havia sido cortada, devia estar parecendo com uma luva de couro ressecada. E, talvez consciente disso, a jovem olhava para a mão com raiva.
— Está horrível, não está? — perguntou ao suspirar. — Antes da lesão, era minha maior qualidade. Mas agora isso é tudo. Sinto que a mão que estou usando nem é minha. Agora só posso fazer apresentações que deixam tanto eu quanto o ouvinte desconfortáveis.
Depois de cometer três erros com a mão esquerda, ela parou de tocar.
— Bem, por que você não tenta realmente usar a mão de outra pessoa? — sugeri.
— O que quer dizer com isso…?
Sentei-me ao lado dela e coloquei minha mão esquerda no teclado. Ela olhou para mim com desconfiança, mas com um olhar que dizia “Ah, muito bem”, começou a desempenhar o papel da mão direita.
Felizmente, era uma música famosa que até eu conhecia: Prelude nº 15 de Chopin 5Ouça aqui..
Eu entrei no terceiro compasso. Já fazia uma década que não tocava piano, mas as teclas do piano eletrônico eram mais leves que as de um piano de cauda, e meus dedos se moveram suavemente sobre elas.
— Então você sabe tocar piano — comentou a garota.
— Só um pouquinho. Só tive uma ou outra aula quando era criança.
Com minha mão direita ferida e sua mão esquerda paralisada, demos um ao outro as mãos que faltavam. E o nosso ritmo se combinou mais rápido do que o esperado.
Quando o tom mudou no 28º compasso, a garota se inclinou em minha direção para fazer as notas graves.
Essa sensação me lembrou de quando ela adormeceu no meu ombro no trem, há dois dias. Já que agora eu não estava usando um casaco, senti seu calor mais distintamente.
— Você não deveria estar doente? — perguntei.
— Eu melhorei.
Em contraste com seu tom contundente, as notas que tocava tinham um som amável e interagiam intimamente com as minhas.
Tocando uma música ou outra, passaram-se três horas em um piscar de olhos. Começamos a notar o cansaço um do outro, então tocamos Spicks and Specks 6Ouça clicando aqui. dos Bee Gees para esfriar, depois desligamos o piano.
— Se divertiu? — perguntei.
— Serviu para afastar o tédio — respondeu ela.
Fomos dar um passeio e jantamos em um restaurante local. De volta ao apartamento, preparei conhaque com leite, que bebemos ouvindo rádio, e ambos pegamos no sono bem cedo. Naquele dia, a garota não disse nada sobre vingança.
Talvez tivesse desistido disso. Ela alegou que ainda continuaria, mas eu tinha certeza de que só estava sendo teimosa.
No fundo, ela não tinha vontade de matar mais ninguém. O que a esperava após as aterrorizantes experiências de assassinato era o medo que fazia suas pernas fraquejarem, a doença forte o suficiente para fazê-la vomitar e a insônia proveniente da culpa. E havia a possibilidade de sofrer um contra-ataque, assim como da última vez.
A essa altura, ela entendeu concretamente a inutilidade da vingança.
Este dia devia ter sido bem mais tranquilo. Ela teve que se deitar sob as cobertas usando fones de ouvido e ouvir música o dia todo, tocar piano como quisesse, comer fora, beber conhaque e voltar para a cama.
Esses dias tinham sido bem raros em sua vida.
Espero que ela possa aceitar esse tipo de vida, pensei. A garota poderia esquecer tudo sobre sua vingança, e até o dia em que o efeito de seu adiamento acabasse, desfrutar de uma felicidade mesquinha, mas definida.
Comprar roupas, ouvir música, tocar piano, sair e se divertir, comer comidas saborosas. Ela não precisava mais ficar com as pernas tremendo, ou vomitar, ou ser espancada.
E eu também não precisaria mais servir como cúmplice de assassinatos e poderia evitar de ser “submetido a um destino adequado” como a sua quinta vítima.
Havia alguma maneira de guiá-la para longe da vingança? O piano, senti, era uma ideia muito boa. Me perguntei se a garota não gostava de mais alguma coisa. Será que eu podia conversar com ela sobre isso?
Enquanto continuava olhando para o teto, perdido em pensamentos, o conhaque fez efeito e meus olhos fecharam.
Mesmo enquanto eu dormia, meu cérebro continuava pensando.
Estive negligenciando algumas coisas.
Por exemplo, senti que errei em alguma coisa nos últimos dias, mas não sabia em quê.
Essa sensação chegou ao máximo no dia anterior, quando a garota disse: “Afinal, como você diz, a vingança não faz sentido.”
Eu devia querer ouvir essas palavras novamente. Ela deixando sua vingança de lado deveria ser algo muito feliz para mim.
Deveria ter sido, sim.
Então, por que senti uma decepção tão intensa?
A resposta surgiu relativamente rápido. Talvez eu não quisesse a ver sendo tão tímida. Não queria que ela rejeitasse o que estivera fazendo com tanta facilidade. Não queria que ela descartasse aquela paixão assim, aquela intensidade.
De certa forma, olhei para o novo modo de agir dela com algo semelhante a raiva.
Mas isso é realmente tudo?, ouvi uma voz perguntar.
Sim, é, respondi. Eu queria sempre sentir aquela poderosa paixão que emanava dela, porque era algo que nunca, jamais, emanaria de mim.
Errado, disse a voz. Essa é apenas uma interpretação favorável. Você ficou desapontado por um motivo mais simples. Não se confunda.
Ouvi um suspiro direcionado a mim enquanto eu continuava confuso.
Tudo bem, vou te dar uma dica. A primeira e única. Se você não entender depois disso, estarei perdendo meu tempo dizendo qualquer outra coisa. Só direi isso uma vez.
— Isso não é a “paixão” que você sente que ela tem?
Isso foi tudo.
Fechei meus olhos e fiquei pensando nisso.
Senti um aroma nostálgico de flores.
Agradeci a Shindo.
Percebi qual era o problema.
Fiquei acordado até o meio da noite. Meu coração estava disparado. Algo brotou na minha garganta – não náusea, mas uma vontade de gritar.
Minha cabeça estava clara, como se eu tivesse acordado após décadas de sono.
Quando me levantei, pisei em uma caixa de CD e a ouvi estalando, mas não me importei com isso.
Enchi um copo com água da pia e bebi, acendi as luzes da sala e sacudi a garota, que dormia com as cobertas cobrindo o rosto.
— O que você quer a esta hora? — Ela verificou o relógio ao seu lado, então puxou as cobertas para escapar da luz.
— Continuaremos com a sua próxima vingança — expliquei, puxando suas cobertas. — Não temos tempo. Acorde e prepare-se.
Ela puxou as cobertas sobre si e as segurou com os braços.
— Não pode esperar até de manhã?
— Não pode — falei. — Tem que ser agora. Eu sinto que, amanhã, você não será mais uma vingadora. Não quero isso.
A garota se virou para ficar de costas para mim.
— Não entendo por que você ficaria tão entusiasmado… — murmurou. — Não seria mais conveniente para você se eu parasse de me vingar?
— Também pensei nisso. Mas mudei de ideia depois de ficar pensando nisso por algum tempo. Ou então só tenha finalmente percebido como me sinto. O que quero dizer é que quero que você seja uma vingadora impiedosa. Não quero que você faça uma escolha “sábia”.
— Isso soa completamente diferente do que você vem dizendo. Não foi você quem disse que a vingança era inútil?
— Isso foi há muito tempo, já até esqueci.
— Sem mencionar — resmungou ela, se enrolando e abraçando os lençóis com mais força —, que depois de matar meu próximo alvo, você não sabe que seria o próximo?
— Sim. Mas, e daí?
— Você está tão desesperado assim para conseguir minhas boas graças?
— Não, isso não tem nada a ver com “marcar pontos”.
— Certo, então acho que você ficou pirado — murmurou ela. — Eu vou dormir. Vá dormir também e esfrie a cabeça. Quando for de manhã e você se acalmar, podemos conversar sobre isso de novo… E apaga a luz.
Eu ponderei. Como poderia explicar isso para que ela entendesse?
Me sentei no sofá e esperei até que as palavras certas aparecessem em minha mente.
— Pensando bem, havia sinais desde seu primeiro assassinato. — Escolhi minhas palavras com cuidado. — Quando você a matou, suas pernas cederam, certo? Honestamente, me peguei pensando: “Que assassina covarde…” Mas não foi você quem reagiu de um jeito estranho, fui eu. Sua reação foi normal, e a minha não. Como poderia ficar tão calmo presenciando a morte de uma pessoa? Não precisava ser tão extrema quanto a sua reação; até mesmo ficar sem dormir por causa da ansiedade já seria o suficiente.
A garota não disse nada, mas parecia estar ouvindo com atenção.
— Depois do seu segundo assassinato, também, eu fiquei perfeitamente indiferente, sem sentir qualquer culpa ou nojo. Em vez disso, percebi uma emoção separada e desconhecida que nunca havia experimentado antes. Isso deve ter ofuscado a impressão negativa que eu deveria ter diante de um assassinato. Quando você cometeu seu terceiro assassinato, acho que quase percebi o que era. Mas não tinha aberto os olhos para isso até agora.
A garota se sentou como se estivesse sacudindo o entorpecimento e olhou para mim, confusa.
— Er, do que diabos você está falando?
Do que eu estava falando?
Eu estava falando sobre amor.
— Acho que estou apaixonado por você.
Essas palavras foram suficientes para congelar o mundo.
Todo o ar escapou pelas aberturas do quarto, deixando um silêncio digno do vazio.
— Um…? — Ela finalmente falou após um longo silêncio.
— Eu sei que não tenho direito a tal coisa. E sei que sou a pessoa menos adequada para se sentir assim em todo o mundo. É até mesmo atrevido. Afinal, fui eu quem tirou sua vida. Mas estou dizendo isso com tudo isso em mente: Parece que estou apaixonado por você.
— Não entendi. — Ela abaixou e balançou a cabeça várias vezes. — Você ainda está dormindo?
— Você entendeu errado. Eu tenho sonambulismo faz 22 anos. E acabei de acordar. Um pouco tarde, eu sei.
— Não estou entendendo nada. Por que você se sentiria compelido a me amar?
— Quando você matou alguém na minha frente — falei —, quando sua blusa estava manchada com respingos de sangue e você olhou para o cadáver, segurando sua tesoura mortal, olhei para você e pensei: “Ela é linda…” No começo, nem prestei atenção ao fato de ter esse sentimento. Mas agora percebo que pode ter sido um dos melhores momentos de toda a minha vida. Na verdade, foi minha primeira experiência de me apaixonar por alguém. Eu, que parecia ter desistido de orar e esperar por qualquer coisa há tanto tempo, pensei: “Quero experimentar esse momento de novo.” Ver você se vingando foi impressionante assim.
— Por favor, não invente coisas. — A garota jogou um travesseiro em mim, mas eu bloqueei e o deixei cair no chão. — Você está tentando ficar no meu lado bom assim? Não vou ser enganada — disse ela com um olhar feroz. — Não gosto disso. Este seu método é o que eu menos gosto.
— Não estou mentindo. E sei que você não vai acreditar. Provavelmente sou o mais perplexo aqui.
— Não quero ouvir isso.
A garota tapou os ouvidos e fechou os olhos. Agarrei seus pulsos e os puxei para longe.
Nos encaramos de perto. Um segundo depois, ela desviou o olhar para baixo.
— Escute, vou dizer de novo — murmurei. — Você é linda quando está se vingando. Então, por favor, não diga que isso não faz sentido. Não se contente com essa conclusão simples e fácil. Pelo menos para mim, isso tem significado. Em termos de beleza, é mais valiosa do que qualquer coisa. Portanto, estou rezando para que você possa se vingar de pelo menos mais uma pessoa. Mesmo se essa pessoa for eu.
Sua mão me afastou e ela empurrou meu peito com força. Caí no chão.
Claro que ela reagiria assim, pensei, olhando para o teto. Que pessoa aceitaria ouvir “Estou apaixonado por você” de quem a matou?
Na verdade, eu não tinha a intenção de falar tanto. Só queria dizer algo como: “Simpatizei com sua vingança, e não vejo problemas em continuar com isso, então não quero que você pare.”
O que diabos foi aquilo de “Acho que estou apaixonado por você”? Eu nunca tinha sentido tais coisas apropriadamente em minha vida – e direcioná-las a uma assassina covarde cinco ou seis anos mais nova? Será que isso era algum tipo de Síndrome de Estocolmo 7Síndrome de Estocolmo é quando uma vítima passa a nutrir sentimentos pelo seu raptor.?
Meu suspiro alcançou a mão da garota, estendida em minha direção.
Eu timidamente estendi a mão em sua direção, e ela a agarrou com firmeza e me puxou para cima.
Algo assim tinha acontecido antes, lembrei. Daquela vez estava chovendo muito.
Houve um longo silêncio, com ela ainda segurando minha mão. Sua expressão dizia “O que estou fazendo?” Olhando para as nossas mãos, parecia estar perdida em pensamentos sobre o significado de sua ação subconsciente.
De repente, seus dedos pararam de segurar e ela rapidamente puxou a mão.
— Anda logo e se arruma — falou. — Se formos rápidos podemos pegar o último trem.
Fiquei atordoado e ela me olhou presunçosamente.
— O que houve? Você gosta de mim quando estou tendo uma bela vingança, não é?
— Sim, é isso… — respondi.
— Isso é difícil para mim entender — falou ela com um sorriso de escárnio. — Ser querida por você, entre todas as pessoas, não me dá nenhuma alegria.
— Não ligo. Você não tem ninguém além de mim para confiar, então sei que poderei acompanhá-la, não importa o quanto você desgoste.
— Exatamente. Estou muito descontente.
Ela pisou no meu pé. Mas não com força suficiente para causar dor, e como estávamos ambos descalços, a suave sensação de toque foi agradável; parecia quase algo que um animal faria como uma demonstração de afeto pelos outros.
Estava muito frio lá fora, então saímos vestindo casacos de inverno. Sob a saliência do apartamento estava estacionada uma bicicleta enferrujada que provavelmente pertencia a algum inquilino. Eu a peguei emprestada sem permissão, fiz a garota sentar na traseira e saí em direção da estação.
Minhas mãos no guidão esfriaram rapidamente, meus olhos doeram com o vento seco e as feridas no meu dedo mindinho doeram com o ar frio.
Depois de subir uma longa colina, havia uma pequena ladeira que levava à estação. O som estridente dos freios ecoou pela sonolenta rua residencial.
Provavelmente sentindo uma sensação de perigo com o aumento da velocidade, a garota se agarrou às minhas costas. E, apenas por esse motivo, desejei que aquela encosta pudesse durar para sempre.
Tradução: Taipan
Revisão: PcWolf
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