No final da noite, quando o dia estava prestes a acabar…
A lua ficou escondida pelas nuvens, fazendo com que ficasse ainda mais escuro.
Em meio a essa escuridão, havia oito pessoas: Aisha, Roroa, Naden, Halbert, Kaede, Ruby, Julius e eu, todos próximos a uma fogueira acesa em uma das muralhas da cidade.
Iluminado pelas chamas vermelhas que se agitavam, entreguei uma carta que tinha escrito para Aisha.
— Envie isto para Hakuya no Castelo de Parnam.
— Entendido.
Aisha pegou a carta, a amarrou no mensageiro kui que ela havia trazido e a enviou. O kui partiu para o sul pelo céu escuro.
— Uma carta? — Julius perguntou, e eu afirmei com a cabeça.
— É uma carta para o primeiro-ministro que foi deixado no castelo, para informá-lo de nossa sua situação e das condições da cidade. Caso haja milhares de homens-lagarto para além de Dabicon, precisaremos tomar algumas medidas contra eles, mesmo depois que os reforços chegarem. Tenho certeza de que Hakuya fará um plano apropriado para a nossa situação e o passará para Ludwin, o Comandante-Chefe dos reforços.
— Entendo… — Julius acenou com a cabeça. — Deixaremos todo o planejamento para o Primeiro-Ministro do Robe Negro, então.
— Será que estou sentindo desprezo? Só por estar deixando tudo nas mãos de outra pessoa?
— Você deve estar imaginando coisas. Ainda assim, continuo impressionado. — Julius deu um sorriso irônico e depois soltou um pequeno suspiro. — No antigo Principado, a opinião do Príncipe Herdeiro era absoluta. Ele liderava sem qualquer hesitação, e seus servos o seguiam sem quaisquer comentários, quer suas decisões fossem corretas ou não. Talvez… tenha sido isso que criou essa distância entre nós e você. Por mais tarde que seja, sinto que agora entendo por que meu pai perdeu.
— Irmãozão… — Roroa olhou para ele com uma expressão de preocupação.
Julius começou a rir.
— Roroa, você e seu noivo foram adversários problemáticos para mim. Mas agora tenho esses mesmos oponentes do meu lado. Nada poderia ser mais reconfortante. Não é?
— Na verdade… nunca achei que o velho você fosse um inimigo tão problemático.
— Palavras ousadas…
— Mas não gostaria de lutar com o seu novo eu. Você parece muito mais forte do que antes. — Roroa sorriu. Parecia que o gelo entre eles estava derretendo.
Levando em conta os conflitos do passado, era difícil dizer se eles poderiam se aceitar totalmente, mas parecia que não se odiariam sem motivo de agora em diante.
Olhando para os dois, senti um pouco menos de culpa por ter tirado a família de Roroa dela.
É por isso que… não importa o que aconteça, devo proteger este país.
Coloquei uma mão no ombro de Naden.
— Vamos indo, Naden?
— Vamos. — Naden assentiu e, em seguida, com um único suspiro, transformou-se em um enorme dragão.
Assim que a montei, Aisha veio correndo com uma expressão tensa no rosto.
— Estou preocupada em deixar vocês irem sozinhos, Majestade! Eu deveria ir com vocês…
— Como expliquei antes, a mobilidade e a detecção do inimigo são os fatores mais importantes para o que vamos fazer. É mais eficiente irmos apenas Naden e eu. Se levarmos alguém como guarda-costas, iremos nos destacar demais. Vamos entrar e sair rapidamente, por isso não se preocupe.
— Mesmo que diga isso, não… consigo evitar.
Aisha mantinha uma expressão de preocupação no rosto, então lhe dei um sorriso.
— Todos temos que fazer o que pudermos para superar essa situação. Já estou exigindo muito dos meus subordinados, então também tenho que fazer o que puder. Não se preocupe. Se algo der errado, tenho certeza de que Hal e os outros virão nos ajudar.
Hal bateu em seu peito com orgulho.
— Sim. Se você se meter em uma enrascada, nós o tiraremos dela. Não é, Ruby?
— Sim. E Naden, assegure-se de proteger seu marido adequadamente também.
— Eu faria isso sem que você me dissesse. — Naden acenou com a cabeça em sua forma de dragão.
Dei um tapinha em suas costas e disse:
— Vamos lá, Naden!
— Entendido!
Naden e eu voamos da muralha do castelo e mergulhamos no céu noturno.
Ela chegou a uma altura que nenhum monstro alado poderia alcançar e planou por lá. A maneira como ela nadava pelo céu mesmo sem asas era muito silenciosa, e sua cor preta combinava com a escuridão da noite.
Eu não sentia frio porque estava protegido pelo poder mágico de Naden, mas o som do vento passando pelos meus ouvidos era alto, tornando evidente que estava em um ponto muito elevado.
Naden virou seu longo pescoço para me olhar.
— Souma.
— Eu sei. Estou procurando agora.
Tapei meus ouvidos para não me distrair com o som do vento e depois me concentrei.
Eu estava usando minha habilidade, Poltergeists Vivos, para controlar seis ratos de madeira, e os fiz procurar pelo chão. Lá embaixo, no nível do solo, monstros semelhantes a quimeras estavam comendo os cadáveres dos homens-lagarto que haviam sido fritos até ficarem crocantes depois de serem bombardeados pela cavalaria de wyverns.
Em uma cena que os fazia parecer como fantasmas famintos, podia ouvir o grunhido dos monstros e os sons da mordida deles se alimentando vorazmente dos cadáveres. As imagens repugnantes fluíram em minha cabeça, desencadeando um reflexo instintivo de vômito, mas, de alguma forma, consegui reprimi-lo e continuar a busca.
Examinei o chão cuidadosamente de uma altura em que não poderíamos ser atacados de surpresa por monstros.
De todos que participaram dessa expedição, Naden e eu éramos a única dupla que poderia fazer isso. Eu estava sempre passando as tarefas que não conseguia realizar para as pessoas que conseguiam. Portanto, sempre que havia algo que eu pudesse fazer, tinha de assumir a iniciativa de fazê-lo, ou não estaria dando o exemplo adequado para os meus subordinados.
Agora não é hora de ficar assustado. Preciso me apressar e encontrá-lo.
Enquanto eu me esforçava em minha tarefa, Naden me olhou com preocupação.
— Você está bem? Não deveria se esforçar demais…
— Estou bem… Encontrei! — Imediatamente dei a ordem a Naden.
— A aproximadamente duzentos metros, às três horas.
— Entendido. — Naden voou pelo ar conforme as instruções até chegar naquele ponto. Então, depois de uma verificação cuidadosa, dei a ela o sinal para avançar.
— Muito bem, faça exatamente como discutimos antes.
— Entendido! Segure firme!
Com isso, Naden mergulhou de cabeça em direção à superfície.
— Urgh…
A sensação era de estar mergulhando no ponto mais alto de uma montanha-russa. A magia de Naden deveria estar reduzindo consideravelmente a força do vento, mas ainda sentia que ele ia me jogar para trás. Eu já deveria estar acostumado a voar pelo céu nas costas dela, mas esse mergulho repentino foi realmente assustador.
O chão estava se aproximando de nós. Eu podia claramente ver os olhos da multidão de monstros no chão piscando enquanto observavam a luz da lua brilhando por entre as nuvens.
Antes que esses olhos pudessem se dirigir a mim, dei a ordem:
— É agora, faça isso! Naden!
— Unahhhhh!
O cabelo branco que Naden tinha em sua forma de dragão ficou em pé e a eletricidade estática roxa crepitou de seus dois bigodes em forma de chicote. E então…
Roarrrrrrrrr!
Naden rugiu e soltou um enorme raio em direção ao chão.
O repentino clarão de luz foi ofuscante, e o enorme estrondo provocado por ele ressoou em meu estômago. O ataque desenfreado de Naden fritou os monstros no lugar em que ela acertou, o que os paralisou ou fez com que se contorcessem incontrolavelmente em uma área maior.
Naden se sentou perto da região atingida.
— Pronto, Souma. Seja rápido.
— Eu sei.
Preparei a besta que trouxe, disparando em direção ao meu alvo. O projétil disparado voou em linha reta, perfurando o pequeno monstro que era meu objetivo.
— Ótimo trabalho — comentou Naden, parecendo estar surpresa. — Não foi ruim, acertou o monstro na primeira tentativa.
— Meu treinador de artes marciais me ensinou o básico, e ele disse que eu me saía melhor com a besta — respondi. — Apesar de ele ter lamentado o fato de eu não ser muito melhor do que um soldado comum em praticamente todo o resto.
— Se é só uma simples questão de atirar, até uma criança conseguiria fazer isso. — respondeu ela.
Sim… Por mais patético que fosse admitir isso, ela estava certa. Eu não era muito melhor do que um amador com uma espada e, apesar de ainda ser um tiro, não conseguia acertar um alvo com um arco e flecha comum.
Se havia outra coisa pela qual eu recebia elogios… era a natação. Eu era até melhor do que Owen na natação, mas o fato de ganhar de um homem com mais de sessenta anos não era motivo para se gabar. Mesmo que ele estivesse super frustrado com o fato.
Como as coisas estavam começando a ficar constrangedoras, peguei o fio que estava amarrado em minha cintura. Ele era de seda, e estava sendo usado como uma alternativa à borracha. Era resistente, flexível e não era propenso a rasgar, e do outro lado dele, um projétil que eu tinha acabado de disparar estava amarrado.
Quando puxei o fio, o pequeno monstro que havia sido perfurado foi arrastado pelo chão. Eu não conseguia sentir o monstro se movendo ou o projétil se soltando… Ótimo.
Com isso confirmado, coloquei minhas mãos nas costas de Naden e disse:
— Certo. Devemos voltar agora, Naden. Não precisamos demorar ainda mais.
— Entendido!
Antes que os monstros pudessem se reunir, Naden avançou para o céu.
Com o corpo morto de um monstro pendurado embaixo de nós, voltamos direto para onde nossos companheiros estavam esperando.
Quando Naden voltou à forma humana e se sentou na muralha comigo, Roroa e Aisha vieram correndo.
— Bem-vindo de volta, querido. Como foi?
— Ainda bem que vocês estão a salvo — disse Aisha aliviada. —Vocês não se machucaram em lugar nenhum, não é?
— Estamos bem. Nenhum de nós se machucou e tudo correu bem — dei um tapinha de leve na cabeça das duas.
Naden, que observava com inveja, estendeu a cabeça em minha direção, então também dei uma boa bagunçada em seu cabelo.
— Bom trabalho lá, Naden. Aquele foi um grande estrondo.
— Heheh, claro que foi. — Naden estufou o peito com orgulho.
Enquanto estávamos conversando, Julius, Hal e todos os demais nos olhavam impacientes.
Julius deu um tapinha no ombro de Roroa para pedir que ela se afastasse, depois ficou na minha frente e disse:
— Desculpe-me por interromper, mas gostaria de confirmar o que você encontrou.
— …Certo. — Joguei o monstro que estava pendurado no fio amarrado em minha cintura sob a iluminação da fogueira.
Era apenas um pouco maior que um cachorro, com um corpo largo e coberto de escamas que se parecia com os desenhos de um tsuchinoko1Criatura do folclore japonês similar a uma serpente. que eu tinha visto em meu antigo mundo. Havia asas de pombo em suas costas e sua cabeça era achatada, mas não havia dúvidas de que era uma cobra. Se eu tivesse que descrevê-la, a chamaria de tsuchinoko com asas.
Olhei para todos e depois falei:
— Este é provavelmente o monstro que Madame Jeanne disse ter comido.
Antes do amanhecer, dentro da torre próxima ao castelo…
Aquele lugar era mal iluminado pela luz do sol ao meio-dia e quase totalmente escuro à noite, mas agora havia uma fogueira acesa no chão de pedra, que iluminava a cela onde o homem-lagarto estava preso com as cores do pôr do sol.
Cinco pessoas rodeavam a fogueira: Aisha, Roroa, Julius, Tomoe e eu. Isso porque se houvesse muitos de nós, o homem-lagarto poderia ficar inquieto.
— Ok… vamos começar. — Eu disse.
Peguei o monstro que parecia uma cobra com asas. Havia um espeto de metal que ia da boca do tsuchinoko voador morto até um buraco perto do ponto em que sua cauda estava presa, e o espeto tinha uma alça na ponta. Essa era uma ferramenta para girar a carne sobre o fogo enquanto ela cozinhava.
O tsuchinoko voador espetado estava apoiado em duas grelhas de metal em forma de Y nos dois lados da fogueira. Quando eu começava a girar o cabo, ele girava sobre o fogo que o estava assando.
Nada de muito especial foi feito com o tsuchinoko voador. Ele não foi depenado nem descascado, e nenhum tempero foi adicionado; foi simplesmente colocado no fogo e assado. Isso não era para nós comermos, era apenas para ensinar o homem-lagarto a assar carne de monstro e comê-la, então isso era o suficiente.
A contínua exposição ao fogo fez com que as penas queimassem e a gordura escorresse de seu tronco rechonchudo. A gordura pingando fez com que o fogo queimasse ainda mais intensamente, então adicionamos água com cuidado para controlá-lo.
O cheiro saboroso da carne assada gradualmente preencheu a sala.
— Você tem jeito para isso… — Julius comentou enquanto me observava cozinhar o monstro. — Talvez você seja melhor como cozinheiro do que é como rei.
— Hahahaha… Não posso negar.
— Não, não, querido. Você não deveria negar isso? — disse Roroa, desapontada.
Seja qual for o trabalho que ele sugerisse, eu provavelmente seria mais apto a ele do que a ser um rei, mas… bem, tenho que me concentrar em cozinhar esse monstro por enquanto.
Chamei Tomoe e sussurrei para ela.
— E aí? O homem-lagarto está nos observando?
— S-Sim, Irmãozão. O Sr. Homem-lagarto não consegue desviar o olhar — respondeu Tomoe, sussurrando.
Era um segredo que Tomoe podia conversar com monstros e demônios, então eu não queria que Julius descobrisse.
Então, timidamente, Tomoe olhou para o homem-lagarto.
— Até pouco tempo atrás, ele só nos via como comida. Mas desde que o cheiro de carne assada entrou no ar, só está olhando para o monstro cozido. Estou ouvindo: “Quero comer essa carne”.
Clang!
Como que para confirmar a última afirmação de Tomoe, o homem-lagarto segurou as grades, enfiando sua boca afiada pela abertura entre elas.
— Eeek !— Assustada com o som do monstro se jogando contra as barras de metal, Tomoe correu e se escondeu atrás de Aisha.
Parece que conseguimos um resultado agradável e interessante…
A carne estava cozinhando aos poucos. A gordura que pingava no fogo fazia um barulho sibilante e, apesar da aparência da criatura, ela estava começando a ficar bem apetitosa.
— Irmãzona Ai, você está babando — apontou Roroa.
— Ops… Me desculpe. — Aisha limpou a boca com as costas da mão.
Isso devia ser uma tortura para a elfa negra, que sempre estava faminta, ficar só observando. Se tivéssemos mais comida, eu prepararia um lanche noturno para ela…
—Bem… acho que isso é o suficiente — comentei.
Olhei para a carne do monstro por baixo para verificar se estava assada o suficiente. Afinal, era a primeira vez que eu estava preparando tsuchinoko voador, então não sabia qual era o melhor resultado, mas achei que já estava bem passada. Então, o peguei do fogo e levantei.
— Está assado e pronto para ser servido!
— Por que você está tão estranhamente enérgico? — indagou Julius com expressão de irritação.
— Não, parecia ser uma boa frase de efeito para se dizer…
— Hã? — Ele olhou para mim como se não tivesse entendido. Foi uma reação natural.
Voltando ao assunto, coloquei o monstro alado, que ainda estava crepitando, em um prato grande e tirei o espeto. Esse era o tsuchinoko voador assado, preparado para ser comido.
— Agora, vamos fazer um teste de sabor! — Coloquei o prato com a carne no chão e, em seguida, usei dois galhos de madeira na horizontal para empurrá-lo.
Quando percebeu que a carne estava se aproximando, o homem-lagarto enfiou os braços para fora das grades e os balançou loucamente. Por fim, quando o prato se aproximou o suficiente, ele pegou o tsuchinoko assado e o triturou.
… Sim, não apenas mordeu, mas triturou. Ele não se importava nem um pouco com os ossos, já que rasgava a carne e a dilacerava.
— É tão selvagem que chega a ser assustador…
Não parecia ser uma maneira agradável de comer. Senti o meu apetite, que havia sido estimulado pelo cheiro de carne cozida, diminuir rapidamente. Olhando ao redor, todos os outros também estavam se contorcendo. Apenas Aisha parecia estar com ciúmes.
Chamei Tomoe e perguntei a ela em um sussurro novamente:
— Tomoe, como está o homem-lagarto?
— Ele está muito feliz. Sua fome foi pelo menos um pouco saciada…
— Sei… Acho que ele aprendeu o gosto da carne de monstro agora.
Até mesmo em meu antigo mundo, quando um animal experimentava o gosto da carne humana, ele começava a atacar humanos. Esse homem-lagarto agora conhecia o sabor da carne de monstros, então ele deveria atacá-los.
Eu disse a Julius:
— A primeira etapa do plano está concluída. Vamos para a segunda etapa.
— O próximo será o evento principal, não é mesmo? — questionou Julius.
Eu assenti com a cabeça.
Tradução: Satonix
Revisão: Pride
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