O congresso dançou em um ritmo vertiginoso.
— Como foi a colheita do Império neste ano? — perguntei.
— Felizmente, este ano a maioria das nossas safras teve um bom desempenho — disse Jeanne. — Nossa safra de trigo, em particular, foi bastante frutífera. Como foram as coisas em Elfrieden? Ouvi dizer que vocês estavam passando por uma crise alimentar.
— Nossos rendimentos têm melhorado sem parar — falei. — Em parte graças ao esforço de replantio ter começado a tempo, não acredito que precisemos continuar temendo uma crise alimentar. Dito isso, tenho algumas dúvidas sobre os níveis de nossas reservas alimentícias. Mesmo que a colheita deste ano seja boa, se tivermos algum problema na safra que vem, ou na próxima, pode haver um retorno da crise.
— Esse é um problema que todos os países compartilham, tenho certeza — disse Jeanne. — Há pouco que pode ser feito, a não ser rogar por uma boa colheita.
Enquanto Jeanne e eu conversávamos, burocratas do reino e do Império cuidavam de seus negócios em silêncio, mas também estavam ocupados.
Alguns estavam freneticamente mantendo um registro dos acontecimentos. Uma vez comprometido pelo papel, um acordo verbal seria tão bom quanto um contrato. Todos ouviram atentamente, garantindo que nenhuma palavra passasse sem registro.
Outros estavam confirmando que havia um entendimento mútuo no significado dessas palavras, a fim de garantir que nada fosse mal interpretado. Havia também aqueles que transmitiam documentos entre si, alguns que prepararam de antemão, comparando os bens e materiais que cada nação tinha em falta ou excesso. Como não compartilhávamos de fronteiras terrestres, seria difícil nos envolvermos em um comércio direto, mas se ambos os lados compartilhassem essas informações, então algo poderia ser resolvido por meio de um terceiro.
O cenário realmente parecia com um campo de batalha.
Hakuya estava examinando os documentos apresentados a ele, enquanto Liscia atuava como minha assistente.
Apenas minha guarda-costas, Aisha, ficou ereta e imóvel, mas provavelmente não queria ter que lidar com os números. Com o grande número de pessoas presentes, estava prestando muita atenção em seus deveres como minhas guarda-costas, mas parecia cansada de tudo.
Faz um tempo que as coisas não ficavam assim…, pensei.
A maneira como as coisas estavam correndo rápida e cegamente me lembrou dos dias em que eu tinha acabado de assumir o trono.
Normalmente, em relações exteriores, mesmo que os chefes de estado se reunissem apenas por dez minutos, nos bastidores estavam os burocratas de cada país negociando há semanas, talvez meses.
As coisas estavam tão agitadas por não ser possível para o reino e o Império manter conversas desde o aparecimento do Domínio do Lorde Demônio. A propósito, a primeira coisa em que Jeanne e eu concordamos foi na retomada da diplomacia bilateral entre o Império Gran Caos e o Reino de Elfrieden.
— Falando em alimentos, achei aqueles bolinhos de raiz de lírio uma delícia — disse Jeanne. — Acredito que o ingrediente principal seja a raiz do lírio encantador. Gostaria de saber como vocês fazem a colheita.
— Fico feliz em te contar — falei. — Pelo que Poncho me disse, ele aprendeu o método com uma tribo montanhesa do Império. Se você solicitar a ajuda deles, isso deve ser simples de fazer.
— Minha nossa. Havia uma tribo dessas no Império? — perguntou Jeanne. — Mesmo sendo meu próprio país, devo vergonhosamente admitir que eu não sabia.
— É assim que são as coisas — falei. — Pode ser difícil para as pessoas verem o que está bem na frente delas.
O mesmo se aplica ao nosso país. Digo, quando fiz o chamado: “Não importa o que seja, se você tem um talento especial, venha e me mostre”, apareceram várias pessoas. Se eu continuasse procurando, provavelmente haveria mais gente assim a ser encontrada.
Para desenvolver este país, vou precisar encontrá-los, pensei comigo mesmo.
Enquanto tomava o café que Serina preparou para mim, olhei para Jeanne.
— Agora, como te dei informações sobre os bolinhos de raiz de lírio, gostaria de receber algumas informações.
Jeanne, que estava tomando chá preto, pousou a xícara no pires e inclinou a cabeça para o lado de forma interrogativa.
— Que informação poderia ser?
— Acho que comida por comida é uma troca justa — falei. — Não existem ingredientes que são usados no Império e que não costumam usar em outros lugares?
— Nesse caso, sei exatamente o que fazer — disse Jeanne, com um sorriso malicioso nos lábios. Não sei, mas ela parecia ter um ás incrível na manga.
Então, ela disse com segurança:
— Carne de monstro.
— Como é…? — perguntei.
— É possível comer carne de monstro.
Carne… de monstro? Espera, sério? pensei.
— Quando você diz monstro… Fala dos do Domínio do Lorde Demônio? E não de masmorras? — perguntei.
— Sim — disse Jeanne. — Eles têm um gosto surpreendentemente normal.
— Você mesma provou?!
Isso é mais selvagem do que eu esperava de sua bela e elegante aparência, pensei. Mas, ainda assim, ela comeu monstros do Domínio do Lorde Demônio… huh. Quando ouvi sobre o kobold que poupou Tomoe e os lobos místicos, pensei que negociar com o Domínio do Lorde Demônio poderia ser uma opção, dependendo da situação… Ah, mas existem “monstros” e “demônios”, certo? Se bem me lembro, os kobolds se enquadram na categoria de demônios.
Hesitante, perguntei a Jeanne:
— Por acaso… você não comeu um kobold, não é?
Quando perguntei isso, Jeanne reagiu em choque, sacudindo a cabeça rapidamente, e respondeu:
— Nem pense nisso! Só comi monstros parecidos com animais! Eu não sairia por aí comendo demônios, com aqueles corpos parecidos com o dos humanos.
— Não, é só que não estou familiarizado com a distinção — falei.
— Entendo… — disse Jeanne. — Afinal, o Reino de Elfrieden não faz fronteira com o Domínio do Lorde Demônio.
Jeanne balançou a cabeça, satisfeita.
— Pois bem. Isso é algo secundário, mas permita-me te fornecer informações que nosso país tem sobre o Domínio do Lorde Demônio, bem como sobre monstros e demônios.
Ela começou a lentamente me explicar tudo.
— Primeiro, mesmo em nosso país, não temos informações sobre por que o Domínio do Lorde Demônio apareceu — disse Jeanne. — Sinceramente, tudo o que podemos dizer é que um dia, do nada, aconteceu.
— Então nem mesmo o Império sabe…? — perguntei.
— Sim — disse Jeanne. — Então, no Domínio do Lorde Demônio, existem criaturas aberrantes que formam enxames, mas que não demonstram inteligência, violentamente devorando toda a vida que encontram, assim como aqueles kobolds, que se comportam quase como exércitos bem ordenados e têm poucas diferenças das raças da humanidade. A fim de distinguir os dois, chamamos os antigos de monstros e os novos de demônios.
Eu já tinha escutado esse tanto do rei anterior, Albert.
No extremo norte do continente, uma dimensão chamada “Mundo Demônio” apareceu, e monstros de vários tamanhos e formas surgiram, jogando os Países Nortenhos em caos. As forças da humanidade formaram uma aliança e organizaram um força punitiva, mas a iniciativa fracassou.
No Mundo Demônio, havia “monstros”, com inteligência mínima (ou, de acordo com algumas teorias, inteligência nenhuma), assim como “demônios”, que eram inteligentes e também poderosos lutadores. Nesta ocasião, a humanidade foi derrotada pelos demônios. Depois da batalha, os humanos perderam os meios de se defender contra os monstros que surgiam do Mundo Demônio. Os Países Nortenhos foram devastados, um após o outro, e os monstros aumentaram seu alcance, cobrindo tudo o que era agora chamado de Domínio do Lorde Demônio.
Quando expliquei o que Albert tinha me contado para ela, Jeanne balançou a cabeça, com uma expressão sombria no rosto.
— Isso mesmo. E foi o Império Gran Caos quem liderou a força punitiva. O comandante foi o imperador anterior, nosso pai.
O Império liderou a força punitiva, hein?, pensei. Bem, visto que são os mais fortes entre todas as nações da humanidade, acho que já devia ser esperado.
— Então, isso significa que o Império fez contato com os demônios? — perguntei.
— Se você quer dizer que travamos guerra contra eles… então sim — disse Jeanne. — Entretanto, minha irmã e eu tínhamos nove e sete anos naquela época, então não os vimos pessoalmente. Porém, com o passar do tempo, e conforme analisamos as declarações daqueles que foram atingidos pela ameaça do Domínio do Lorde Demônio, a situação da época ficou clara para nós.
— Que situação é essa? — perguntei.
— No início, quando muitos países pereceram, inúmeras vidas foram perdidas e um número ainda maior de pessoas foi desalojado para se tornarem refugiados — disse Jeanne —, todos os ataques foram feitos por monstros.
Falei:
— Monstros? Então não havia demônios?
— Sim. Pelo menos àquela altura. — Jeanne fez uma pausa para tomar um gole de chá, olhando para a xícara enquanto caminhava. — A primeira vez que os demônios foram avistados foi quando encontraram a força punitiva na batalha. E a força punitiva foi exterminada pelas mãos daqueles demônios. Depois disso, com a nossa capacidade de travar guerras afetada, a humanidade foi incapaz de se defender dos ataques dos monstros, e fomos forçados a recuar e abrir mão de um território considerável.
— Então, resumindo, a criação do Domínio do Lorde Demônio foi um processo de dois estágios? — perguntei.
O primeiro estágio foi o ataque dos monstros que apareceram do nada. O segundo foi quando os demônios exterminaram a força punitiva e as forças enfraquecidas da humanidade foram atacadas por monstros. Isso provavelmente tinha acontecido algum tempo depois, mas o ataque que levou Tomoe e os lobos místicos a se tornarem refugiados devia fazer parte do segundo estágio.
Jeanne balançou a cabeça, continuando:
— Parece que os danos causados diferiram muito entre os monstros e os demônios. Durante os ataques de monstros no primeiro estágio, ouvi dizer que foi tudo horrível de se ver. Os monstros cuspiam fogo, queimando cidades, devorando soldados e civis, sem se importar com idade ou sexo. Ouvi dizer que não sobrou nada além dos restos confusos da destruição pelas cidades e aldeias que atacaram.
Então eram verdadeiros monstros, hein, pensei comigo mesmo. Esses seres monstruosos enxamearam a terra como gafanhotos, e até a humanidade não passava de uma presa para eles.
— Então, o segundo estágio, o ataque dos demônios, foi guerra pura — disse Jeanne. — Ouvi dizer que agiram de forma organizada, esmagando a força punitiva com a força avassaladora de seus braços. Além disso, embora sejam poucas, temos declarações daqueles que afirmam que suas aldeias foram atacadas por demônios. Essas situações variam e, em alguns casos, os que se retiraram não foram mais atacados, enquanto em outros, os demônios estupraram e saquearam, realizando massacres.
— Quase como as raças da humanidade, hein… — falei.
A maneira como os danos variavam de um lugar para o outro era o ponto em que a semelhança ficava mais forte. Mesmo dentro do mesmo exército, quando há unidades disciplinadas e indisciplinadas, a situação pós-ocupação varia entre os indivíduos. Quando ocupamos Van, fiz alguns soldados de exemplos, na tentativa de manter todos os meus exércitos na linha, mas, se não tivesse feito isso, poderia afirmar que existiriam aqueles que abusariam da população civil.
Monstros… e demônios, hein…, pensei.
— De onde você acha que vem a diferença? — perguntei. — Os demônios são evoluções dos monstros?
— “Ganharam consciência comendo cérebros humanos!”…, é o que alguns bandos religiosos proferiram por um tempo… mas isso é um absurdo — disse Jeanne. — Se fosse esse o caso, haveria muito mais demônios por aí. Desde que as linhas de batalha acabaram em um impasse, foram apenas os monstros que nos atacaram. Porém, poderia dizer que é por isso que temos sidos capazes de manter o status quo.
Em outras palavras, nós simplesmente não sabemos o que realmente são monstros e demônios?, pensei.
Falei:
— Pensando bem, quando estávamos cavando uma lagoa de sedimentação perto de Parnam, encontramos muitos fósseis de monstros. Pareciam ser de um estrato que deveria estar na superfície há mais de alguns milhares de anos.
— O que são esses… “fósseis”? — perguntou Jeanne.
Ah, isso ainda não é de conhecimento comum neste mundo?, pensei.
— Para simplificar, são ossos deixados na terra por criaturas vivas que já morreram — falei. — Há muitas coisas que afetam o processo, mas os ossos fossilizam no subsolo por um longo, longo período de tempo. Entretanto, mesmo que os ossos tenham estado no subsolo por apenas alguns milhares de anos, ainda podem ser chamados de fósseis.
— Entendo… Então, isso significa que pode ter havido monstros na superfície há vários milhares de anos? — Jeanne parecia pensativa.
Eu não esperava essa reação calma. Afinal, quando abordei o assunto em uma conversa com Liscia, ela ficou bem chocada.
— Achei que você ficaria mais surpresa… — falei.
— Quando se pensa nisso, mesmo antes do aparecimento do Domínio do Lorde Demônio, havia monstros vivendo dentro das masmorras — disse Jeanne. — Será que não havia uma masmorra por lá?
— Parece que nosso país não tem registros disso, sejam históricos ou lendários — falei. — Porém, dado que foi há milhares de anos, não posso negar que é possível que tenha sido há tempo suficiente para que não existam lendas.
— Hmm… talvez também devêssemos investigar isso em nosso território — disse Jeanne.
Se iriam fazer isso, eu não poderia pedir ainda mais.
— Eu gostaria muito que vocês fizessem isso — falei. — O reino planeja realizar escavações em todo o país para investigar o assunto.
— Por favor, diga-nos se descobrirem alguma coisa — disse Jeanne. — Claro, faremos o mesmo.
— Certo. — Balancei a cabeça.
O Império tinha muito mais território do que o reino. Se estivessem dispostos a investigar o assunto, eu poderia esperar que mais descobertas fossem feitas. Claro, eu ainda pretendia continuar com nossa pesquisa no reino.
Isso estabelecia um acordo formal para o reino e o Império trocarem informações sobre escavações e pesquisas.
Jeanne tirou um tempo para respirar, terminando sua xícara de chá.
— Bem, acho que desviamos bastante do assunto de monstros serem comestíveis.
— Ah, é mesmo… Estávamos conversando sobre isso, não é? — Também acabei com o resto da minha xícara de café, então pedi a Serina que pegasse outra xícara para cada um de nós. Depois de eu tomar meu café e Jeanne tomar seu chá, recomeçamos.
— A carne que comemos era de uma cobra alada — disse ela.
— Uma cobra alada? Um dragão? — perguntei.
Lembrei que havia um deus chamado Quetzalcoatl1Um deus da cultura asteca. na América Central e na do Sul que também era uma cobra alada, mas esta não era a Terra, e ela chamou de monstro, então provavelmente seria mais natural presumir que fosse algo como um dragão.
Era a minha suposição, mas Jeanne balançou a cabeça.
— Não, não é nada tão impressionante. Na verdade era só uma cobra gigante com quatro asas de pássaro.
Mas que diabos?, pensei. Parece com uma quimera.
— Fico surpreso por vocês decidirem comer algo assim…
— Tinha o gosto parecido com o de qualquer cobra2Antes de qualquer piadinha de mal gosto, é importante lembrar que inclusive aqui no Brasil o consumo de carne de cobra é comum. comum — disse Jeanne. — Parecia mais peixe do que frango. Bem saborosa, na verdade.
Fiquei surpreso por ela ter comido cobra, mas… bem, elas também são comidas em alguns países. Quando pensei em carne de cobra, a imagem que me veio à mente foi a falsa carne de peixe do Rashomon3É um livro de Ryunosuke Akutagawa. de Ryunosuke Akutagawa, que li em minhas aulas de literatura moderna, mas… será que era saborosa?
— Você deveria ser uma princesa, não devia? — perguntei. — Isso é algo estranho para você ter comido.
— Também sou comandante de exércitos — disse Jeanne. — Se pudermos viver da terra, teremos rações extras.
— Isso é… prático da sua parte — falei.
— Agora, quanto ao que me fez pensar em tentar comer um monstro… Foi quando um de nossos batedores retornou e relatou que viu “os restos de um monstro que parecia ter sido cozinhado por demônios”.
Havia uma outra palavra ali que chamou a minha atenção.
— Você disse “cozinhado”? Não foi só comido ao acaso?
— Sim — disse Jeanne. — Os ossos pareciam ter sido cortados com uma lâmina e, a julgar pela cabeça carbonizada deixada para trás, poderíamos deduzir que foi tudo torrado, depois cortado e devorado. Isso me fez pensar que, se pegássemos um monstro do mesmo tipo, poderíamos tentar comer. — Jeanne colocou um dos biscoitos que foram servidos na boca e comeu. — Claro, primeiro verifiquei se não era venenoso, sabe? Mandei primeiro dar de comer aos animais, e só então deixei as pessoas experimentarem. Então, uma vez que a segurança foi verificada, comemos da ordem de oficial mais inferior ao mais superior.
— Não é fácil testar a comida para ver se é venenosa, hein… — falei.
— Então, quando comi, achei o sabor simples, mas refrescante — disse Jeanne. — Tinha um gosto bom, normal.
— Não, não estou preocupado com o sabor, havia algo mais interessante no que você acabou de dizer — falei.
O que ela disse sobre os demônios comendo monstros foi muito mais chocante do que o fato de que eles eram comestíveis. Significava, basicamente, que os demônios não viam os monstros como sendo da mesma raça que eles.
Eu adorava frango e porco, mas, por mais que seus rostos os fizessem parecer porcos ou vacas, nunca pensei em comer orcs ou minotauros. Comparado a comer algo com corpo humanoide, até cobra seria melhor. Os demônios talvez se sentissem da mesma forma.
Pensando nisso, cheguei a uma certa hipótese.
— Ei, Madame Jeanne.
— O que é? — perguntou ela.
— Será que demônios e monstros são equivalentes ao que chamamos de “pessoas” e “animais”?
No momento em que falei isso, o ar congelou. Não só Jeanne, mas Liscia e Hakuya também arregalaram os olhos graças ao choque.
Huh? Falei algo tão surpreendente?
— O que te faz pensar nisso…? — perguntou Jeanne, apagando qualquer vestígio de expressão de seu rosto.
Pensei em explicar meus motivos… então hesitei por um momento. O que eu ia dizer poderia parecer discriminatório, dependendo de como fosse interpretado. Claro, não era isso que eu queria fazer, mas ainda assim poderia ofender, dependendo de como as pessoas interpretassem.
Talvez devesse primeiro esvaziar a sala…, pensei.
— Hm… Prefiro que o que estou prestes a dizer não seja ouvido por muitas pessoas — falei.
— Tudo bem…
Quando Jeanne olhou para eles, os burocratas imperiais pararam de trabalhar, silenciosamente saindo do escritório. Fiz meus próprios burocratas também saírem, pedindo para Aisha ficar perto da porta para garantir que ninguém estivesse olhando. Os únicos que ficaram na sala foram Jeanne, Liscia, Hakuya, Aisha e eu. Olhei para Liscia, que estava ao meu lado registrando o conteúdo da conversa.
— Liscia, quero que você também pare de gravar — falei.
— Certo… — A caneta de Liscia parou. Agora, o conteúdo de nossa reunião não estava mais sendo registrado.
Nesta sala tão silenciosa, que fazia a empolgação anterior parecer uma mentira, Jeanne encolheu os ombros.
— Se primeiro precisa esvaziar a sala, deve ser perigoso. Que tipo de declaração bombástica você está prestes a fazer?
— Sinto muito — falei. — É que o que vou dizer pode ser considerado discriminatório.
— Discriminatório? Em uma conversa sobre monstros e demônios? — Jeanne parecia em dúvida, mas escolhi minhas palavras com cuidado enquanto continuava.
— Sim. Você perguntou o que me fez pensar isso. Bem, é que… Não consigo perceber a diferença entre os animais e os monstros deste mundo. Os animais são maiores que os do meu, com grandes e afiadas presas, e uma aparência geralmente agressiva. Se esses animais aparecessem no meu mundo, as pessoas definitivamente pensariam que são monstros.
Ainda mais quando se trata de coisas como rinossauros. Se alguma criatura gigante como aquela aparecesse em meu mundo, provavelmente causaria pânico. Com seus corpos enormes, pareciam dinossauros ou algo saído de um filme de monstros.
— Hmm… É mesmo? — Jeanne interrogativamente inclinou a cabeça para o lado. Não conhecendo os animais do meu mundo, ela não conseguia imaginar como isso era para mim.
— Bem, é assim que é — falei. — E… se eu for um pouco mais longe, posso dizer que tenho dificuldade em ver a diferença entre raças como homens-fera ou dragonatos e demônios.
Ela engasgou de choque.
— Isso é…
Levantei a mão para impedi-la.
— É, eu sei. Se os homens-fera me ouvissem, ficariam bravos e diriam: “Não nos confunda com eles.” Mas, ainda assim, para mim, como um cara que viveu em um mundo sem demônios ou homens-fera, é difícil ver a diferença.
Quando vi Kaede no café cantante Lorelei em Parnam pela primeira vez, não fui capaz de dizer a diferença entre a sua raça, raposa mística, e a de Tomoe, loba mística.
Na época, perguntei: “São ambas do tipo canino, então não podemos só agrupá-las como cães místicos?”
Quando falei isso, Liscia respondeu: “Se você disser isso, deixará tanto os lobos quanto as raposas místicas com raiva. Kobolds são cães místicos, então seria como juntar humanos com macacos”, e me alertou a não fazer isso.
Na época, acabei por aceitar que era assim, mas quando pensei um pouco mais no assunto, qual era a diferença entre lobos e raposas místicas e kobolds?
— Você pode dizer a diferença entre lobos e raposas místicas e kobolds? — perguntei.
— Claro que posso — disse Jeanne. — Lobos e raposas místicas têm orelhas e caudas, mas seus rostos e corpos não são muito diferentes dos humanos. Os kobolds, por outro lado, têm cara de cachorro.
— Mas existem homens-fera com rostos de animais, certo? — perguntei.
Para dar um exemplo do meu próprio lado, nosso General do Exército, Georg Carmine, era um deles. Se aquele homem leão aparecesse no Japão, todos pensariam que era algum tipo de demônio.
Quando mencionei isso, Jeanne cruzou os braços e gemeu.
— Quando você diz assim… faz sentido. Hrm… Ah, já sei. Kobolds são cobertos de pelo. Em outras palavras, embora os homens-fera tenham algumas características de animais, os kobolds talvez sejam como cachorros andando sobre dois pés, igual humanos, sabe?
— Nesse caso, como você distinguiria demônios sem pelo ou com pelo curto? — perguntei. — De acordo com esse raciocínio, os homens-fera não seriam como orcs e minotauros, que têm corpos como os de um humano musculoso?
— Murgh… — disse Jeanne.
Quando rejeitei seu argumento, ela pensou por algum tempo, então disse: “Desisto” e então levantou as mãos em sinal de rendição.
— Nunca pensei muito na diferença entre demônios e humanos. Quando você apontou isso, pela primeira vez notei que estava distinguindo as pessoas dos demônios por puro instinto.
— É isso mesmo… — murmurou Liscia. — Agora que estamos sendo questionadas, não consigo encontrar uma única diferença definidora.
— Imagino por que nunca notamos isso… — murmurou Hakuya.
Ambas assentiram várias vezes.
Provavelmente era o entendimento comum da maioria das pessoas deste mundo. Ou seja, significava que as pessoas deste mundo podiam instintivamente distinguir as pessoas dos demônios.
Para explicar de uma perspectiva japonesa, mesmo entre aqueles que amam moluscos em sua sopa de missô, muitos provavelmente ficam enojados só de olhar para moluscos terrestres como lesmas.
Além disso, as pessoas que reagem com choque a vídeos de aborígenes australianos comendo larvas de insetos de dentro de árvores, não veem problema em comer camarão (cru, aliás), que parece a mesma coisa quando está sem casca.
É natural que o ambiente em que crescemos e nossos costumes afetem a maneira como entendemos as coisas.
Será que a compreensão sobre os demônios neste mundo era algo assim?
— No meu mundo, os humanos são a única raça de pessoas — falei. — Vivi em um mundo sem elfos, homens-fera, dragonatos ou demônios, então não tenho um senso que me permita distinguir entre eles. Aos meus olhos, os demônios parecem apenas mais uma raça do tipo humano.
— S-Senhor! — Aisha irrompeu de sua posição, de pé ao lado da porta. — Será que você nos odeia, os elfos negros…? — Ela me olhou como um cachorrinho abandonado.
Eu sorri para ela.
— De forma alguma. Um elfo de pele escura é simplesmente adorável. Claro, o mesmo também vale para uma beldade humana ortodoxa.
A primeira frase foi dirigida a Aisha, enquanto a segunda foi dirigida a Liscia.
Quando me ouviu, Aisha gemeu: “Verdade, você está falando sério?!” Seu rosto esbanjava alegria, enquanto Liscia dizia: “Sim, sim, tá.” Seu tom seco, mas com um sorriso nos lábios que mostrava que ela não se importava com o elogio.
Jeanne observava as duas com um sorriso irônico.
— Posso ver o quão amado você é.
— Elas são a melhor guarda-costas e noiva que eu poderia merecer — falei.
— Bem, isso é adorável… Whew. — Jeanne afundou na cadeira. — Fico feliz por você manter isso só entre nós. Se tivesse dito isso tudo sem antes esvaziar a sala, eu poderia ter que matar os burocratas do meu país.
Matá-los?! Do nada, essa violência toda?!
— I-Isso é mesmo algo que te force a ir tão longe? — gaguejei.
— É — disse Jeanne. — Se o que você falou se espalhasse, não iria só piorar a opinião das pessoas a seu respeito. Isso poderia causar uma guerra em todo o continente. Não é, Sir Hakuya?
— Você está totalmente correta — disse Hakuya. — Eu gostaria de ter ensinado isso a ele antes. — Hakuya me olhou com reprovação.
Huh, ele está bravo comigo?, pensei, surpreso.
— Você precisa entender isso, senhor — disse Hakuya. — Se o que você disse sobre “Ser difícil distinguir demônios de homens-fera” se espalhar, isso daria a um país de supremacia humana, como o Principado da Amidônia, ou aos elfos do Reino Espiritual de Garlan, que pensam que são o povo escolhido, o material perfeito para atacar seus inimigos. Homens-fera e dragonatos seriam expulsos como se fossem demônios, ou acusados de possivelmente conspirarem com o inimigo, e seriam sujeitos a perseguição indevida.
Eu lembrava que o Reino Espiritual de Garlan era uma nação insular a noroeste do continente.
Era um país formado por duas ilhas, uma grande e outra pequena, mas a menor havia sido abandonada devido a ataques de monstros, e uma parte da ilha maior também foi ocupada. Ao menos aparentemente… Só ouvi boatos, já que o país tinha políticas altamente isolacionistas e muito pouca informação vazava.
As raças élficas tendiam a ter muitos homens e mulheres bonitos, e essa tendência era especialmente forte entre os elfos superiores. Eles se autodenominavam o povo escolhido por Deus e desprezavam as outras raças, detestando qualquer interação com elas.
Parecia que mesmo neste momento, com a invasão dos monstros, isso não mudaria.
Em um país como Garlan ou a Amidônia, verdade, provavelmente tentaria usar essa informação para afirmar a superioridade de sua própria raça. Na verdade, a Amidônia já tinha conseguido fomentar o ódio contra Elfrieden para tornar seu povo mais fácil de governar. Existiam países por aí que usariam o ódio e o preconceito.
Jeanne balançou a cabeça.
— Sir Hakuya está correto. Além disso, não é algo que países multirraciais como o meu ou o seu possam ignorar. E se esse tipo de pensamento seguisse adiante, estaríamos olhando para as chamas da violência interracial em nosso próprio país. Se tivéssemos um conflito interno, além das ameaças externas que já enfrentamos…
— Sinto muito… — falei. — Eu ainda não tinha pensado nisso.
Inclinei minha cabeça com sinceridade. Todos tinham apontado bons pontos. Havia coisas mais importantes em jogo do que a minha reputação. Eu precisava ser mais cauteloso com minhas palavras.
Enquanto eu refletia sobre minhas ações…
— Não — disse Jeanne, balançando a cabeça. — Se você não tivesse apontado isso, eu não teria notado. É um assunto complicado, mas é melhor do que isso ser de repente jogado sobre nós. Agora podemos fazer preparativos.
— Fico grato por você ter dito isso — falei. — Ainda assim, não consigo pensar em nenhuma contramedida…
Quando falei isso, Jeanne encolheu os ombros e suspirou.
— A Declaração da Humanidade vai contra a perseguição de grupos minoritários, mas isso é um acordo entre estados. Se fosse uma política nacional, como se alguém da administração, por exemplo, emitisse uma ordem de perseguição, poderíamos intervir, mas se fosse o povo comum, tudo o que poderíamos fazer é chamar a atenção do país para o assunto em questão.
— Além disso, há países como o nosso que sequer assinaram a Declaração da Humanidade — falei. — Além disso, se tentar intervir nos assuntos internos de outros países, isso vai gerar descontentamento, o que pode, na pior das hipóteses, levar à guerra.
— Concordo com você — disse Jeanne. — Além do mais, não temos todas as informações relevantes sobre demônios e monstros disponíveis. Com tantos fatores incertos, tirar decisões precipitadas é perigoso.
No final, ficou decidido que o Império e o reino continuariam discutindo esse problema.
Chamamos os burocratas de volta, e a conferência continuou até o anoitecer. Por volta dessa hora do dia, as pessoas começavam a sentir fome.
Jeanne era uma importante convidada de outro país, então eu normalmente ofereceria um banquete para ela, mas o tempo era precioso para nós dois, então decidi que comeríamos na conferência.
Isso exigia algo que pudéssemos comer enquanto trabalhávamos, então decidi servir a ela e sua comitiva um certo tipo de pão que eu estava pensando se deveria distribuir por todo o país.
Quando Jeanne comeu aquele pão, sua reação foi…
— Isso é incrível! Parece errado juntar um alimento básico com outro alimento básico, mas uma vez que você se delicie, as duas texturas contrastando resultam em uma combinação perfeita. O molho de tomate dá um sabor agradável e picante. Além disso, ao colocar algo que normalmente comeria em um prato em um pão, permite que coma com uma só mão! Tiro meu chapéu para você por essa ideia! Que maravilha!
Ela elogiou sem qualquer contenção…
Pensou que era um sanduíche? Que pena; era um pão de espaguete.
A verdade era que eu queria fazer um pão de yakisoba, mas simplesmente não consegui reproduzir aquele molho espesso. Foi por isso que usei macarrão e molho de tomate, ambos já existentes neste mundo, para fazer um pão de espaguete. A propósito, não desisti de replicar o molho; Poncho estava, neste exato momento, pesquisando.
— Quando vi isso pela primeira vez, questionei a sua sanidade, mas é mesmo bom — disse Liscia.
— Pão e massa não são novidades, mas comer isso junto, assim, é uma experiência bastante nova — disse Hakuya.
Liscia e Hakuya também pareciam estar gostando.
Agora que a crise alimentar estava mais ou menos resolvida, pensei que, em vez de ideias malucas como o udon de gelin, seria bom espalhar alguns pratos da Terra. O desenvolvimento de nossas tradições culinárias melhoraria o poder e a imagem da marca de nosso país, e também poderia levar a um influxo de dinheiro estrangeiro.
Agora, quanto a Aisha, a que tinha mais probabilidade de cair de boca nesses tipos de pratos novos…
— Om, nom, nom!
Mesmo estando atrás de mim como minha guarda-costas, ela estava ocupada devorando pães de espaguete.
Vai com calma, Aisha, pensei. Quantos você já comeu?
O que antes era uma montanha de pães no prato se reduziu a uma pequena colina. Mesmo em um momento assim, a elfa escura faminta continuava como sempre.
Assim que terminamos de comer nossos pães e fizemos uma breve pausa, Jeanne abordou o assunto que tínhamos que discutir.
— Hmm… Pois bem, acha que está na hora de mudarmos para o tópico da sua ocupação de Van? A posição do Império é de que, em consonância com a Declaração da Humanidade, não podemos aceitar as mudanças de fronteira ocasionadas pelo uso da força militar. Exigimos que o Reino de Elfrieden devolva Van e a região circundante ao Principado da Amidônia.
— A posição do reino é de que não podemos aceitar essa demanda — falei. — O agressor neste conflito foi o Principado da Amidônia. Acho que nossas ações são justificadas, não?
— Você também pode ser visto como tendo os induzido a agir, entende? — perguntou Jeanne.
— Eles fizeram de tudo para interferir em nossos assuntos internos — respondi. — Não é certo que reclamem assim após virarmos o jogo contra eles. O Império está de acordo com isso? Se aceitar o comportamento ultrajante deles, tanto os signatários quanto os não-signatários da Declaração da Humanidade irão passar a considerá-los de forma leviana.
— Sim, irão — disse Jeanne. — É por isso que o Império está disposto a obrigar a Amidônia a pagar todas as reparações cabíveis. Nesse caso, acho que o Império não tem escolha a não ser punir ambos os lados.
Bem, sim… Achei que seria essa a resposta, pensei.
Como a Amidônia era signatária da Declaração da Humanidade, o Império não tinha escolha a não ser ficar do lado deles e exigir que Elfrieden devolvesse o território. Mas se permitissem que a Amidônia escapasse com esse comportamento ultrajante, isso convidaria os demais signatários a agirem sem pensar, o que criaria resistência dos não-signatários. Isso significava que precisavam impor penalidades severas à Amidônia, a fim de manter os outros estados signatários na linha. O Império tinha o poder para fazer exatamente isso.
Olhei para Jeanne, como se a testasse.
— E se não obedecermos, vocês irão recorrer à força militar?
— Não é o meu método preferido… mas se for necessário, não teremos escolha — disse Jeanne. — Neste momento, o número de tropas que o Império trouxe se iguala ao seu Exército Real, mas tenho confiança de que temos poder para aniquilar as forças do reino e do principado ao mesmo tempo, caso necessário.
O Corpo de Blindagem Anti-Magia, os esquadrões de grifos e os rinossauros carregando canhões… Lembrei dos muitos tipos de tropas que tinham que seriam poderosos ao lutar contra as muralhas de um castelo. Não havia qualquer indício de orgulho nas palavras de Jeanne.
— Aposto que sim… — falei. — Também não queremos lutar. — Descansei meus cotovelos na mesa, cruzando os dedos na frente da minha boca. — É por isso que eu gostaria de esclarecer cada uma de nossas intenções aqui.
— Nossas intenções, você diz? — perguntou Jeanne.
— Sim — respondi. — O Império não quer reconhecer as mudanças de fronteiras. É por isso que você está pedindo que o reino devolva Van. Correto?
— Sim… Isso mesmo. — Jeanne balançou a cabeça.
Tendo confirmado a intenção do Império, continuei:
— Agora, quanto à nossa intenção, queremos reduzir o poder do Principado da Amidônia, que continua se envolvendo em ações hostis contra o nosso país, a fim de garantir que não possam mais influenciar em nosso país. Além disso, queremos que paguem por nos invadir. Tomamos Van para cobrar esse custo.
— Entendo… — disse Jeanne. — Então você não tem nenhum desejo em particular de manter Van. Em outras palavras, um retorno incondicional da cidade está fora de questão, mas se o principado pagar um preço adequado, estamos preparados para devolver.
Foi bom notar que ela compreendia rápido. Quando balancei a cabeça, Jeanne lançou um olhar severo para mim.
— Irá exigir a cabeça de Sir Julius?
— Isso dificilmente valeria tanto quanto uma cidade inteira — falei.
— Então… o que você quer é dinheiro? — perguntou ela.
— Claro — concordei. — Se o principado pagar uma indenização ao nosso país, devolveremos Van. Você mesma disse que o Império faria com que o principado pagasse um preço adequado por suas ações, então isso deveria ser perfeito, não?
Olhando para o futuro, entregar um território que poderia produzir riqueza indefinida, caso administrado de forma adequada, em troca de um único pagamento, não era rentável. Porém, por ter sido território Amidoniano até recentemente, e levando-se em consideração as relações com o Império, não era uma má decisão.
Enquanto isso, para o Império, teriam cumprido seu dever para com o principado, garantindo o retorno de suas terras, e poderiam passar um aviso aos outros signatários:
— Se agirem como a Amidônia, não poderão ter território confiscado, mas terão que pagar indenizações. — Isso, como efeito, também ajudaria a construir a confiança dos não signatários.
Jeanne suspirou.
— Sir Julius não vai gostar…
— Não tenho piedade sobrando para a raiz do problema — falei. — Faça com que ele pague com a moeda imperial. Afinal, Sir Julius não é muito inteligente quando se trata de economia. Ele provavelmente vai pensar que pode apenas cunhar moedas de baixa qualidade para as reparações.
— Quer envolver nosso país nisso? — perguntou Jeanne.
— O Império compartilha da responsabilidade pelo comportamento ultrajante da Amidônia — respondi. — Vocês devem me ceder ao menos isso.
— Não tenho uma boa resposta para isso… — Depois de encolher os ombros e revelar um sorriso irônico, Jeanne de repente assumiu uma expressão mais séria. — Tenho uma pergunta para você. Por que o Reino de Elfrieden não assina a Declaração da Humanidade da minha irmã? Se vocês fossem signatários, não acho que o reino e o Império acabariam em debate graças a esse assunto. — Jeanne olhou para Liscia e acrescentou: — Hesito em dizer isso na frente da Princesa Liscia, mas quando se trata de por que o rei anterior, Sir Albert, não assinou a Declaração da Humanidade… bem, posso entender. Não é que ele tenha optado por não assinar, já que…
— Ele não conseguiu decidir se assinava ou não — concluiu Liscia por ela. — Ele é tão indeciso.
Liscia foi direto ao ponto e disse o que Jeanne hesitou em falar. Jeanne olhou para ela de forma apologética e disse: “É exatamente isso”, e depois acenou com a cabeça.
Então continuou:
— Entretanto, no seu caso, acho que você vê a ameaça representada pelo Domínio do Lorde Demônio, bem como a necessidade de toda a humanidade se unir na batalha contra ele. No começo, pensei que era porque você não conseguia confiar em nós, como os culpados por você ter sido invocado para este mundo. Mas, antes, você disse que não guarda nenhum ressentimento em nossa relação por causa disso. Se for esse o caso, por que não adota a Declaração da Humanidade da minha irmã?
Quando ela olhou direto nos meus olhos e perguntou isso, fiquei com um enigma em mãos.
Eu ainda não poderia dar a verdadeira resposta. Mas se eu mentisse e ignorasse a questão, provavelmente prejudicaria as relações com o Império.
Depois de pensar por um momento, comecei a falar calma e vagarosamente.
— Isso é… vamos chamar de “lenda” do meu mundo. Há muito, muito tempo, existiam dois deuses: um no leste e outro no oeste.
O Deus do Leste disse:
— O mundo deve ser igual. Assim, digo a vocês, Ó humanos, que cada um de vocês deve arar os campos pelo mesmo período de tempo, e as colheitas devem ser igualmente divididas entre todos.
O Deus do Oeste, por outro lado, disse:
— O mundo deve ser livre. Assim, digo a vocês, Ó humanos, que cada um de vocês deve cultivar os campos, e aqueles que trabalharem mais duro podem obter safras equivalentes aos seus esforços.
O Deus do Leste disse ao Deus do Oeste:
— Com os seus métodos, os ricos ficarão mais ricos e os pobres mais pobres. Em um mundo assim, surgirão conflitos entre os ricos e pobres.
O Deus do Oeste disse:
— Se aqueles que trabalham mais duro receberem tanto quanto aqueles que trabalham menos, perderão a motivação para trabalhar. Se isso acontecer, a quantia total a distribuir diminuirá, e a sociedade como um todo ficará mais pobre.
E, então, os dois deuses se encararam. O conflito entre os dois influenciou os países que adoravam cada um deles. Enquanto os países do Leste e Oeste se encaravam, cada um pensando: Estamos certos e eles errados, os mais preocupados com tudo foram os países apanhados no meio da confusão.
Se os países que acreditavam nos dois deuses entrassem em guerra, seriam as primeira vítimas. Suas casas e campos seriam todos destruídos. Então pensaram: Bem, o que vamos fazer a respeito?, os países próximos à fronteira tiveram um lampejo de percepção.
— Já sei! Pode ser inevitável que se encarem, mas só precisamos estabelecer algumas regras que impedirão uma guerra!
E, assim, os países que ficavam perto das fronteiras se juntaram com muitos outros países do Leste e Oeste para estabelecer algumas regras.
Uma delas era:
— Não vamos permitir que as fronteiras sejam alteradas pela força militar.
Outra era:
— Vamos deixar que as pessoas de cada país decidam por si mesmas.
E também:
— Vamos organizar intercâmbios culturais entre o Leste e Oeste e nos dar bem.
— Que história é essa?! — explodiu Jeanne.
Quando de repente comecei a contar essa velha lenda, ela me olhou em dúvida, mas, conforme a história avançava, foi gradualmente arregalando seus olhos de surpresa. Até esse ponto Jeanne parecia composta, mas então tudo ruiu.
Liscia e Hakuya tinham olhares semelhantes em seus rostos.
Jeanne bateu as mãos na mesa, inclinando-se para mais perto.
— Deixando o processo de lado, as regras que decidiram eram basicamente a Declaração da Humanidade! Então, como acabou?!
Jeanne estava ansiosa por uma resposta, mas balancei a cabeça em silêncio.
— Quanto ao que aconteceu depois… Não posso te contar.
— Sir Souma! — explodiu Jeanne.
— Mas eu sei como a história terminou — falei.
— Essas regras… não foram suficientes para evitar a guerra? — perguntou Jeanne, preocupada, mas balancei a cabeça.
— Não, pelo menos enquanto aqueles dois deuses se encaravam, foram capazes de evitar o pior cenário, que era uma guerra aberta entre os dois. Eventualmente, o Deus do Leste se desfez, e por esse deus ter perdido o poder de lutar, o Deus do Oeste ficou aliviado e parou de olhar naquela direção.
— Parece um final feliz — disse Jeanne. — Então, qual é o problema?
— Bem, se acabasse tudo assim, seria como se “viveram felizes para sempre” — falei.
— Então, tem mais alguma coisa na história?
— Isso é tudo que posso dizer por agora… — falei. — Sinto muito, mas não posso revelar mais nenhuma das minhas cartas.
Interrompi a conversa em um tom forte. Jeanne parecia querer continuar me pressionando, mas desistiu ao ver o meu olhar.
Falei para ela:
— Não se preocupe. Você logo vai descobrir. Não vou causar problemas para o Império.
— Você está me preocupando… — disse ela.
— Eu gostaria que você confiasse em mim; nosso país gostaria de caminhar ao lado do seu. Enquanto a Imperatriz Maria mantiver seu ideal de unir a humanidade contra a ameaça do Domínio do Lorde Demônio, prometo que o reino nunca será inimigo do Império.
Jeanne ainda parecia em dúvida.
— Você não vai aderir à Declaração da Humanidade, vai? Ainda assim, pede para confiarmos em você?
— A Declaração da Humanidade não é o único pacto possível — falei. — Não podemos aderir à Declaração da Humanidade, mas nosso país gostaria de formar uma aliança independente com o Império. Secretamente.
— Uma aliança secreta… é?
Concordei firmemente.
— Finalmente conseguimos estabilizar a situação dentro de nossas fronteiras. A partir daqui, pretendo reformar as forças armadas, criando um sistema que me permita mover todas as minhas forças de forma unificada. Além disso, consegui quebrar as presas da Amidônia com esta guerra. Nosso país está finalmente livre para mover as suas forças.
Jeanne não disse nada.
— Então, aqui está a minha proposta — falei. — Neste momento, o Império está enviando tropas para ajudar a União das Nações Orientais, certo?
— Sim… — Ela balançou a cabeça. — São um conglomerado de estados de médio a pequeno porte, muitos dos quais assinaram a Declaração da Humanidade. Como líder desse acordo, é natural que enviemos tropas para lá.
— Sim, é isso — falei. — Posso pedir que deixe esse dever com o nosso país a partir de agora?
— Está falando sério sobre isso?! — Jeanne ergueu a voz, surpresa.
Era esta a minha proposta:
No centro deste continente estava a inexpugnável Cordilheira do Dragão Estrela, onde viviam dragões sábios. Se os monstros e demônios viessem para o sul, teriam que contornar essas montanhas pelo leste e oeste.
Sendo esse o caso, eu estava sugerindo que o Império resistisse ao avanço ao sul pelo oeste, enquanto o reino resistiria pelo leste. Em termos práticos, isso significava que se a União das Nações Orientais fosse ameaçada pelo Domínio do Lorde Demônio, o reino enviaria reforços.
Entretanto, havia um processo necessário.
— Caso isso aconteça, e o Império, como chefe da Declaração da Humanidade, receba um pedido de reforços da União das Nações Orientais, vocês farão um pedido de reforços para nós — falei. — Quando o nosso país despachar tropas, quero que possamos assumir a resposta a um pedido do Império.
— Essa parece uma forma bem indireta de fazer as coisas… — disse Jeanne. — Por quê?
— Embora ainda não tenhamos força nacional para sermos chamados de grande potência, somos a segunda maior nação em território, excluindo o Domínio do Lorde Demônio — falei. — Se descobrirem que a primeira e a segunda maiores nações do continente estão trabalhando juntas, alguns países ficarão preocupados. Os que estão entre nós, o Principado da Amidônia, o estado mercenário de Zem e a República de Turgis, principalmente. É por isso que, na medida do possível, não quero que saibam que o Império e o reino estão cooperando.
— Entendo. Daí a aliança secreta.
Jeanne estava com uma expressão pensativa. Ela devia estar pesando os prós e contras desse pacto. Entretanto, não deveria haver nenhum contra para o Império na minha oferta.
Economizariam os fundos de guerra que seriam usados para defender o leste, e poderiam aumentar suas defesas no lado oeste de seu próprio país, onde compartilhavam uma fronteira com o Domínio do Lorde Demônio. Se havia algo de que pudessem suspeitar, seria de nossas intenções…
Passado algum tempo, Jeanne assentiu.
— Não vejo mal em aceitar a sua proposta. Mas, há algum mérito em vocês assumirem esse dever?
— Se eu fosse pressionado a responder, poderia dizer que é para construir confiança com o Império — falei. — Isso, e porque estaríamos participando da guerra, gostaria que vocês parassem de exigir subsídios de guerra.
— Claro — disse Jeanne. — Isso é algo que pedimos aos países que não estão envolvidos com a guerra… Mas, tem certeza? Não sinto que isso seja o suficiente para você…
— Bem, quando a existência da humanidade em si está em jogo, é preciso pensar mais nisso do que em uma simples análise de custo-benefício — falei. — Além do mais, se fingirmos que nada é problema nosso, tendo nosso país estável, os outros países não nos verão com bons olhos.
— Entendo… — Jeanne cruzou os braços, gemendo em resposta. — Nesse caso, é uma questão de quanto podemos colaborar. O Império e o reino estão em lados opostos do continente. Levará algum tempo para nos comunicarmos. É bom que possamos redirecionar os pedidos de ajuda para vocês, mas se os reforços não chegassem a tempo, seria terrível.
— Temos uma ideia de como lidar com isso — falei. — Hakuya, traga aquilo.
— Sim senhor.
Hakuya se levantou e saiu da sala, logo retornando com uma caixa de madeira do tamanho de uma caixa de papelão. Ele então ofereceu a caixa para Jeanne.
Ela aceitou, olhando para aquilo em dúvida.
— O que seria isso?
— Tente abrir — falei. — Quero que você dê isso à Madame Maria.
— Isso é… um receptor? Ah…! — Jeanne parecia ter descoberto. Na caixa havia um receptor simples, como os usados quando dei meu ultimato aos três duques.
— Este receptor está configurado para a mesma frequência das joias de nosso país — falei. — Quando você retornar ao Império, gostaria que me enviasse um dos receptores simples de lá. Claro, ele deverá estar na mesma frequência que uma das joias do Império. Dessa forma, poderemos entrar em contato a qualquer momento.
Ou seja, usando receptores simples e uma joia de cada país, estabeleceríamos uma linha direta entre o Império e o reino. Ao contrário das joias, os receptores simples eram fáceis de usar.
Se um dos países ligasse para o receptor simples do outro com um pedido de diálogo, o outro só precisava ir ao local onde estava a joia e poderiam começar na mesma hora. Isso só permitiria transmitir vídeo e áudio, então não seria possível assinar nada, mas se tivéssemos burocratas para ir e voltar com os documentos, até mesmo isso seria possível.
Jeanne pareceu muito impressionada com esta proposta.
— Com isso, você pode facilmente fazer reuniões com minha irmã, que não tem como deixar o Império. Não sei o que dizer, Sir Souma. Sua criatividade me faz tremer de admiração.
— Você está exagerando — falei. — Era bem normal ter algo assim no meu antigo mundo.
— E você acha que é perfeitamente normal… Hm, Sir Souma? Gostaria de sua permissão para dizer algo um pouco extremo — disse Jeanne. — Tem algum problema?
Algo extremo? O que ela vai dizer?, pensei.
— Posso permitir isso.
— Obrigada. Pois bem… Princesa Liscia.
— Hã, eu?! — Liscia pareceu surpresa por a conversa repentinamente virar para ela, mas Jeanne ainda assim continuou.
— Você consideraria restaurar Sir Albert ao trono? Se agirem agora, o Império irá apoiar com todas as forças.
Recomendando que ela me deponha?! Estou aqui, sabia?!
No começo, Liscia pareceu confusa, mas quando voltou a si, respondeu com raiva, seu rosto ficando vermelho:
— O que você está sugerindo?! Eu nunca faria isso!
— Oh, por que a exaltação? — disse Jeanne. — Para começar, este era o reino de Sir Albert. Então eu gostaria que você, por favor, entregasse o recém-libertado Sir Souma para nós! Se ele for comigo, receberá o cargo de chanceler, ou qualquer outro que quiser! Nisso, posso incluir até a minha irmã como um bônus adicional, então, por favor, torne-se nosso Imperador!
Não, se você está oferecendo sua própria irmã como se fosse um brinde… não está tratando a Imperatriz de forma muito leviana?!
Liscia ficou indignada.
— Você ao menos consegue perceber o que está dizendo?!
— Estou sã, sim — disse Jeanne. — A maneira como Sir Souma pensa está à frente do nosso tempo. Quero ver o Império que ele e minha irmã criariam. Se fosse assim, nunca deveríamos ter aceitado as reparações de guerra. Devíamos ter insistido que Sir Souma fosse entregue. Não é tarde demais, poderia considerar ir para o Império?
— Evidentemente não! — Liscia bateu as mãos na mesa. — Eu preciso… o reino precisa de Souma!
Liscia gritou ameaçadoramente, mostrando seus dentes caninos. Não era só Liscia; Aisha, atrás de nós, estava emitindo uma aura de mal-humor. Sua mão também estava avançando em direção à sua arma.
Apreciei o quanto se importavam comigo, mas Jeanne era, tecnicamente, uma importante convidada de outro país. Eu não poderia permitir que fossem muito hostis com ela.
Afaguei a cabeça de Liscia, dizendo:
— Pronto, pronto. Calma, Liscia. Não vou a lugar nenhum, tá?
— Sinto muito… — disse ela. — Acabei perdendo a compostura.
— Aisha, fica, garota! — gritei — Não toque nisso!
— N-Não está me tratando de forma um pouco indigna?! — objetou Aisha.
Ignorando isso, olhei de volta para Jeanne.
— Sinto muito, mas não posso atender a esse pedido. Ouvi dizer que Madame Maria é encantadora, mas quero ficar aqui e ser rei neste país, onde Liscia e as outras estão.
— Uff… Eu sabia — disse Jeanne. — Mas acho realmente lamentável que você pense assim.
Jeanne, então, antes de baixar a cabeça, disse:
— Obrigada por me permitir dizer algo extremo. Agora, de volta ao tópico da aliança… Isso é algo muito importante para eu decidir por iniciativa própria. Agora que você forneceu um sistema maravilhoso para nossos dois Chefes de Estado conversarem através da Transmissão de Voz da Joia, acho que seria melhor se você discutisse o assunto diretamente com minha irmã. Por enquanto, gostaria que alguns membros de seu corpo diplomático fossem ao Império. Também deixarei alguns membros de nossa burocracia aqui, então, por favor, leve-os para o reino com você.
— Entendo. Isso torna a coordenação das coisas ainda mais fácil — falei. — Muito bem… que tal isso? E se cada um de nós conferir o título de Embaixador Extraordinário e Plenipotenciário ao representante de nosso corpo diplomático e, depois, estabelecer uma embaixada na capital de cada país? Afinal, ter que viajar de um lado para outro, entre nossos dois países, sempre que decidirmos algo, seria ineficiente.
— Isso é maravilhoso! — exclamou Jeanne. — Vou analisar a possibilidade. Nossa… a sabedoria jorra do Rei Souma como a água de uma fonte termal.
Mais uma vez, a ideia não era minha. Se ela me avaliasse muito, só me faria ficar mais constrangido… Mas, bem, deixando isso de lado, Jeanne e eu continuamos conversando sobre várias coisas.
Falamos, por exemplo, sobre a vontade de Madame Maria de abolir a escravidão.
Ela aparentemente queria abolir o sistema, que foi um viveiro para o tráfico humano, por um longo tempo, mas Madame Maria agora estava procurando usar a ameaça crescente do Domínio do Lorde Demônio para fazer isso em nome da unidade nacional. Embora a política fosse difícil de ser aprovada em tempos de paz, ela reconheceu que poderia forçar isso e não demorou a aproveitar a oportunidade. Parecia que ela era mais do que uma simples sonhadora idealista.
Eu também era a favor da abolição, mas achei que isso era muito repentino, então pedi para esperar. Mudanças repentinas, mesmo as boas, sempre causam o caos. A Revolução Francesa, com seu apelo por liberté, égalité, fraternité, resultou nos expurgos do Reino do Terror, e o movimento da Primavera Árabe pela democratização (embora eu não pretendesse, de forma alguma, condenar o movimento) atraiu o caos aos países da região. Com meu conhecimento a respeito desses precedentes, tinha que ser cauteloso.
Por isso falei ao Império que a emancipação deveria ser feita aos poucos. Se possível, eu queria que avançassem no mesmo ritmo que o reino.
E, bem, com tópicos importantes assim surgindo, um após o outro, os burocratas de ambas as nações ficaram em frenesi. Mesmo tarde da noite, assim que a conferência acabou, eles continuaram.
Provavelmente ficariam acordados durante a noite toda. Com um olhar de soslaio para aqueles burocratas, levei Liscia e Jeanne comigo para o terraço do escritório de relações públicas.
Como era tarde de uma noite de outono, estava bem frio. Pedi a Serina para nos levar leite quente em canecas de madeira e, embora não fosse realmente para comemorar o fim das conversas, fizemos um brinde.
Liscia ergueu sua caneca.
— Pela glória do Império.
Jeanne ergueu sua caneca.
— Pelo desenvolvimento do reino.
Eu levantei minha caneca.
— E pela amizade entre as nações.
— Um brinde!
Batemos nossas canecas de madeira juntas.
Tinha leite quente nelas, então, depois do brinde, só pudemos tomar um gole (já que se tomássemos tudo, iríamos ficar com a boca queimada), mas… ah, estava bom. Uma coisa que passei a apreciar desde que cheguei a este mundo foi o sabor do leite. Não era pasteurizado (provavelmente ordenhavam direto em um balde de metal, assim como era visto em O Cachorro de Flandres4É um filme de anime de 1997., e então refrigerado com água de rio ou poço), então o sabor continuava intocado. A desvantagem era que não era exatamente seguro, mas… a espessura era irresistível!
— Esta foi uma conferência muito frutífera — disse Jeanne enquanto eu era aquecido pelo delicioso leite quente. — Conversamos por um bom tempo, não é? O amanhecer está chegando.
— Agora que penso nisso, sinto que conversamos sobre muitas coisas que nem precisávamos — falei.
Como tínhamos nos dado ao trabalho de arranjar uma linha direta usando a Transmissão de Voz da Joia, achei que poderíamos ter deixado uma série de tópicos que discutimos para uma data posterior. Me senti mal pelos burocratas de ambas as nações, cujas cargas de trabalho aumentaram por nossa causa.
— Talvez por estar tão tarde, ficamos estranhamente animados… — falei.
— Você pode nos culpar? — disse Jeanne com um sorriso. — Eu, por exemplo, fiquei emocionada ao encontrar novos amigos confiáveis.
Amigos… huh.
Verdade, embora nossa aliança fosse secreta, nós e o Império agora poderíamos ser chamados de amigos. Quanto à influência que essa aliança secreta teria no mundo… Eu ainda não tinha certeza, mas saber que os outros países podiam compartilhar dos meus valores era reconfortante. O Império devia sentir o mesmo.
Jeanne de repente assumiu uma expressão séria.
— Tenho uma coisa para te contar, meu amigo do leste.
— O que? Minha amiga do oeste.
— É sobre o Lorde Demônio, que dizem habitar o Reino do Lorde Demônio — disse ela.
O Lorde Demônio. Se eu fosse usar meu conhecimento de RPGs, esse seria o ser que governava os demônios e os monstros. Enquanto isso não era confirmado, o rei anterior, Sir Albert, me disse que aparentemente havia um ser assim dentro do Domínio do Lorde Demônio.
— Você viu o Lorde Demônio? — perguntei.
— Não — disse Jeanne. — Mais que isso, ninguém nunca disse ter visto. Aqueles que foram a fundo no Domínio do Lorde Demônio foram a força punitiva inicial, mas foram quase completamente erradicados.
— Hein? Então como vocês sabem que existe um Lorde Demônio? — perguntei.
— Quando a força punitiva foi arrasada, havia um grupo de demônios que parecia ser capaz de falar, e havia uma palavra que falavam com frequência — disse ela. — Os pesquisadores do meu país levantaram a hipótese de que esta palavra pode ser o nome do Lorde Demônio.
Jeanne fez uma pausa e depois pronunciou a palavra, como se a anunciando.
— A palavra era… “Divalroi”.
— Divalroi… Lorde Demônio Divalroi? — perguntei.
— Sim. Dizem que esse é o nome do Lorde Demônio. — Jeanne assentiu sombriamente.
Lorde Demônio Divalroi, hein… hmm?
— Lorde Demônio Divalroi… Lorde Demônio… Divalroi, Lorde Demônio… — murmurei.
Huh? O que é isso? Lembro de ter ouvido essa frase em algum lugar, pensei. Isso é déjà vu? Não, não é isso… Isso soa familiar. Em algum lugar. Ouvi isso em algum lugar. Em algum outro lugar. Não neste mundo. No outro mundo?
Não, espera. Por que eu pensaria na Terra? Não devia existir nenhum lorde demônio na Terra. Não conheço nenhum Divalroi. Não deveria, pelo menos, mas há algo puxando no fundo da minha mente.
— Q-Qual o problema, Souma?! — exclamou Liscia.
Quando voltei aos meus sentidos, Liscia estava me apoiando. Eu parecia estar segurando a cabeça com as mãos e tropecei. Liscia e Jeanne pareciam preocupadas, então sorri para elas.
— Estou bem — falei. — Acabei de ser atingido por uma onda repentina de sonolência.
— Hmm… já está tarde — disse Jeanne. — Que tal encerrarmos a noite?
Já que Jeanne também estava dizendo isso, decidimos nos encontrar novamente no dia seguinte, na sala de audiências e com Julius presente para anunciar o que decidimos, então fomos todos descansar.
Pedi a Serina para guiar Jeanne a um quarto de hóspedes, enquanto Liscia e eu fomos para o quarto que Liscia estava usando. Eu queria dormir o quanto antes, mas minha cama ficava no escritório de relações governamentais. Eu não poderia dormir muito bem com os burocratas trabalhando bem ao meu lado, então pensei em pegar um canto do quarto de Liscia emprestado.
— Souma… você está mesmo bem? — perguntou Liscia, parecendo preocupada, quando chegamos ao quarto dela.
— Estou bem… — falei. — Só estava um pouco exausto.
— Você está mentindo! — explodiu ela. — Você costuma ficar acordado por três noites seguidas! Não vou acreditar que ficou cansado depois de ficar acordado até tarde por apenas uma noite!
— Não, acho que isso que você está falando é muito ruim… — falei.
Liscia suspirou.
— Venha aqui.
Ela se sentou em sua cama, me instruindo a me sentar ao lado dela. Sentar ao lado de uma linda garota em sua cama era uma situação que deveria ter feito meu coração disparar, mas a atitude séria de Liscia me intimidou a obedecê-la calmamente.
Quando fiz isso, no momento em que me sentei, Liscia agarrou minha cabeça e a colocou em seu colo. Foi meu primeiro travesseiro de colo em muito tempo. Eu podia ouvir a voz suave de Liscia acima de mim.
— Não sei o que causou isso, mas quando estiver cansado, deixe-me cuidar de você — disse ela, acariciando a minha testa.
— Sinto muito… — falei. — E muito obrigado.
— Hee hee. Não há de quê.
Fechei meus olhos, deixando a tensão largar o meu corpo. Quando ouvi o nome “Lorde Demônio Divalroi”, senti uma vaga incerteza por já ter escutado o nome. Isso não ficou resolvido, mas só ter minha cabeça afagada assim já fazia meu coração ficar mais leve.
Graças a Liscia, no tempo que demorei para adormecer, não precisei mais me preocupar.
Tradução: Taipan
Revisão: Sonny Nascimento (Gifara)
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