Como um Herói Realista Reconstruiu o Reino

Como um Herói Realista Reconstruiu o Reino – Vol. 03 – Cap. 03 – Negociações

 

20º dia, 10º mês, 1546º ano, Calendário Continental – Castelo Van

— Agora… Aqui vou eu, senhor! — gritou Aisha.

— Venha, Aisha! — gritei de volta.

Estávamos no campo de treino dentro do Castelo Van. Nesse espaço, o qual era a céu aberto como um local para treinar com arcos no Japão, eu estava de pé em frente à Aisha completamente armada. Em sua armadura leve de sempre, ela se posicionou com a ponta de sua grande espada virada para mim. Eu tinha alguns bonecos médios do Pequeno Musashibo (os do tamanho de brinquedo eram muito pequenos, enquanto os largos o suficiente para caber uma pessoa dentro eram muito grandes), cinco desses (que a partir desse momento iriam ser chamados de A-E), me protegendo.

No canto de minha visão, vi a juíza, Liscia, levantar sua mão direita.

No próximo momento, Aisha fez uma grande curva para baixo com sua espada. Uma onda de choque visível voou em direção a mim e aos Pequenos Musashibos.

Coloquei o Pequeno Musashibo A, equipado com escudos em ambas as mãos, na frente, com seus escudos preparados. No momento em que a onda de choque o atingiu, foi possível ouvir um grande clangor, mas, de alguma forma, ele conseguiu aguentar.

— Ainda não acabei! — gritou Aisha.

Não houve tempo para alívio. Aisha se virou de lado, mantendo a lâmina de sua espada virada para mim, e então avançou para uma estocada com toda sua força. O Pequeno Musashibo A tentou sobrepor seus escudos para defender, mas o golpe de Aisha acertou com a força de um aríete1Antiga máquina de guerra, a qual era usada para derrubar muralhas ou portões de cidade., perfurando ambos os escudos e o Pequeno Musashibo A.

Eita… Ela consegue perfurar dois escudos grossos…? Eu estava praticamente estupidificado pela surpresa com o tanto de poder que ela tinha, mas então Aisha parou de se mover por um momento.

Pensando que era minha chance, enviei o Pequeno Musashibo B, equipado com duas espadas, e o Pequeno Musashibo C, equipado com uma lança, para atacá-la por ambos os lados.

Aisha fincou sua espada, a qual ainda estava empalando o Pequeno Musashibo A, no chão e a usou para se jogar no ar, como se estivesse fazendo uma estrelinha.

Ela ficou levantada por suas mãos no topo da empunhadura de sua espada.

— Ali! — gritei.

Com os dois Pequenos Musashibos restantes, D e E (ambos equipados com bestas), atirei em Aisha, a qual presumivelmente não conseguiria se manobrar com seus pés fora do chão.  As duas flechas voaram diretamente na direção dela.

— Isso não é bom o suficiente! — clamou Aisha.

No topo da espada fincada no chão, ela fez algo parecido com um daqueles chutes de capoeira em que se apoia nas mãos (Aparenta ser o golpe”Meia Lua de Frente”2Golpe de Capoeira que consiste em lançar a perna de trás, esticada, num movimento de rotação, de fora para dentro. A parte que toca o adversário é a parte interna do pé.), rodando seus pés e chutando as flechas no ar.

— Ai! — falei.

Com um som de tec, um impacto leve em minha testa jogou minha cabeça para trás.

No meio de minha testa estava uma bola de argila amassada, mais ou menos do tamanho de uma  moeda de 10 ienes. Se, ao invés disso, tivesse sido uma faca ou uma pedra, eu teria morrido instantaneamente.

Bem, sendo uma luta de prática, as flechas não tinham pontas e estávamos usando argila ao invés de pedras, então nenhum de nós acabaria morrendo, mas ainda assim, perder tão feio assim foi deprimente…

Me sentei desanimado.

— Aah, caramba… Não sou nem um pouco páreo para você, hein? — falei.

— I-Isso não é verdade… — gaguejou Aisha, enquanto rapidamente tentava me consolar.

— Aisha, uma análise precisa da força de luta é importante, então deveria ser honesta com ele — disse Liscia.

Ela estava certa. Eu estava procurando por um estilo de luta que me servisse. Como rei, estava em posição de ser protegido, mas ser capaz de me proteger não machucaria, se fosse necessário. Cometi um pequeno erro com Gaius na batalha de um tempo atrás, afinal de contas.

— Liscia está certa — falei. — Fale sem rodeios.

— T-Tudo bem, então… pode parecer um pouco bruto dizer isso, mas mesmo que tenha organizado seus bonecos para parecer um grupo de aventureiros, não senti como se fossem tão fortes — disse Aisha. — Sinto como se tivesse sido mais difícil de lidar quando deu duas espadas para cada e os fez me atacarem.

Considerei isso.

— Táticas do Pi*min, né…? Mas você ainda os mandou para longe quando fiz isso, não?

— Então o que fez hoje foi ainda pior do que aquela vez, suponho — disse Liscia.

— Ugh…

Quando ela ressaltou aquilo, meus ombros caíram. Já que as táticas do Pik*in não funcionaram, tentei usar uma composição baseada em um grupo de aventureiros, como o de Juno, com o qual me aventurei junto usando o Pequeno Musashibo, mas… o resultado foi uma infeliz derrota.

— Em um grupo de aventureiros, teriam um mago, afinal de contas — disse Aisha, sem parecer ligar muito. — Se esses escudos tivessem sidos reforçados com magia, eu teria tido dificuldades em penetrá-los e, se fossem feitiços voando para mim ao invés de flechas, teria sido mais difícil de reagir.

Quando ela disse que teria sido “difícil”, ao invés de dizer que seria “impossível” fazer ambas as coisas, serviu apenas para mostrar o quão ridiculamente poderosa Aisha era.

— Podemos falar sobre magos o quanto quiserem, mas não consigo usar magia elemental ou de reforçamento… — afirmei. Eu não conseguia usar magia de forma alguma, então não era possível que eu fornecesse um alinhamento elemental para as armas que os bonecos controlados pelos Poltergeists Vivos carregavam, a fim de fazê-los atirar gelo ou fogo.

— Se eu fosse para uma escola de magia ou algum lugar assim para treinar, eu talvez conseguisse aprender como usar — falei.

— Não, impossível. — Liscia rapidamente rejeitou a ideia. — Quero dizer, nunca ouvi sobre alguém com magia do tipo de escuridão sendo capaz de usar outro elemento.

Ela prosseguiu com a explicação.

— Os quatro grandes elementos: fogo, água, terra e vento, utilizam o núcleo do mago na atmosfera para produzir diversos fenômenos, enquanto o elemento de luz interfere dentro do corpo do mago para fazer coisas como acelerar o processo natural de cura ou fortalecer o corpo. O elemento de escuridão não tem nenhuma habilidade como essa. Então… apenas desista.

Parecia que eu podia treinar o quanto quisesse, mas nunca seria capaz de me tornar um mago.

Isso justo quando tive a sorte de ser invocado em um mundo com magia…  seja como for, estou desapontado. Meus ombros caíram com meu desânimo.

— Por que está deprimido? — perguntou Liscia com um olhar irritado. — A compatibilidade com o tipo de escuridão não é tão comum, sabia? Vi somente três pessoas com isso.

— Três? — perguntei. — Assumindo que dois dos três são Tomoe e eu… quem é a terceira pessoa?

— Minha mãe, ou foi o que ouvi dizer. Mas ela nunca quis me dizer qual é o poder dela.

Hm… Lady Elisha consegue usar magia negra, né?, pensei. Ela é a mãe de Liscia. Se me lembro bem, foi ela quem realmente herdou o trono, mas deixou o controle do país com seu marido, Sir Albert, certo? Não tivemos muitas oportunidades para conversar, mas ela está sempre sorrindo e parece ser do tipo amigável.

— Mas com as habilidades que tenho, não vejo nenhuma maneira de me defender… — falei.

— Fique em paz, senhor! Vou sempre estar por perto para te defender! — declarou Aisha, batendo no peito com orgulho. Quanto mais ela parecia confiável, mais eu me sentia patético.

— É um pouco ridículo um herói precisar de garotas para o defender… — afirmei.

— O que está dizendo após todo esse tempo? — disse Liscia abruptamente. — Você nunca pareceu muito heroico, para começo de conversa.

Bem, ela estava certa…, mas não poderia ter amenizado um pouquinho mais? Eu estava pensando que ela poderia, mas então ela disse:

— Além disso, designar as tarefas que você não consegue fazer sozinho para os outros não é uma de suas forças, Souma? Você está protegendo todos nós de formas que apenas você consegue. — Ela sorriu carinhosamente.

Aisha balançou a cabeça, concordando.

— A princesa está certa! Você protege o país em que todos nós vivemos, senhor, então nos deixe protegê-lo em troca!

Quando falaram desse jeito, ainda me senti patético, mas fiquei um pouco feliz. Posso não ser um rei muito confiável, além de ser um herói somente em nome, mas só preciso as proteger do meu próprio jeito… não, eu quero protegê-las. Me senti dessa maneira do fundo do meu coração.

— Vossa Majestade! — Uma voz chamou, me virei e vi Juna em seu uniforme da marinha se curvando para mim com uma mão em seu peito.

— Senhor Hakuya estava procurando por você — disse Juna. — Ele deseja discutir sobre o planejamento da cidade, pelo que disse.

— Certo — falei. — Já estou indo.

Me levantei e retirei a sujeira do meu corpo. Deixando a limpeza para os soldados, trouxe Liscia e Aisha comigo para o escritório de assuntos governamentais. Era hora de fazer o que eu era capaz de fazer.

Quando cheguei ao escritório de assuntos governamentais, Hakuya e o Capitão da Guarda Imperial, Ludwin, estavam esperando por mim.

Sentei em minha mesa, enquanto Liscia, a qual passou um tempo agindo como minha secretária, e Juna, a qual estava fazendo a mesma coisa porque tínhamos poucas pessoas na época, estavam atrás de mim, uma de cada lado. Aisha estava de pé, próxima à porta, agindo como uma guarda. Ultimamente, trabalharmos nessa formação havia se tornado uma norma para nós.

Uma vez que confirmei que todos estavam prontos, Hakuya, com olhos um pouco sonolentos, apresentou um mapa das divisas de Van que ele havia preparado.

— Finalizei minha proposta de redistribuição de distritos de Van, então gostaria que analisasse.

A pedido do Hakuya, olhei para o mapa. Os quarteirões da cidade estavam na vertical, enquanto linhas representavam as principais ruas que iam em direção do palácio real no centro. Elas tinham estradas secundárias que saíam delas em um certo ângulo e em intervalos regulares, fazendo uma rede de quarteirões, como um tabuleiro de Go3Jogo de tabuleiro de origem chinesa.. Estava parecido com um mapa de uma das antigas capitais do Japão, Heijo-kyo ou Heian-kyo, que poderia ser visto em um livro de história.

As residências dos nobres estavam agrupadas ao nordeste, enquanto as lojas estavam agrupadas ao sudoeste. Guarnições para os guardas estavam distribuídas igualmente em todas as partes. Parecia muito eficiente.

Eu estava em silêncio. Me encostei em minha cadeira, olhando para o teto, e suspirei.

— Hakuya…

— Pois não, senhor — disse ele.

— Isso já é demais — afirmei.

Qual é a dessa estrutura focada em eficiência?, pensei.

Ane san rokkaku tako nishiki… Senti como se precisasse recitar a música de estrada de Quioto ou ficaria perdido.

Na verdade, se iremos alterar tanto, não seria mais rápido queimar a cidade-fortaleza até não sobrar nada e começar do zero?, pensei. Está tentando me fazer virar o Imperador Nero?

— Perdão — disse Hakuya. — Quando vi o caos em que a estrutura da cidade estava, me senti obrigado a torná-la mais eficiente…

Hakuya parecia entender o que quis dizer. Ele sorriu sem graça e apontou para as ruas principais.

— De qualquer forma, como uma medida contra incêndios, a cidade deve ser dividida em distritos. Estabelecer essas ruas principais é uma necessidade, ao menos esse é meu pensamento.

— Concordo, mas… para todo o resto, gostaria que as mudanças refletissem a vontade da população que vive aqui — falei. — Que tipo de cidade desejam fazer, o que querem fazer para torná-la mais confortável para eles. Quero que as pessoas que vivem aqui pensem sobre isso. Afinal, se apenas decidirmos tudo sozinhos, elas provavelmente irão resistir.

— Já entrei em contato com alguns arquitetos que vivem aqui, mas… você quer fazer com que os moradores pensem? — perguntou Hakuya, incrédulo. — Com a atual atmosfera da cidade, provavelmente irão tornar a cidade em uma grande avant-garde…4Significa vanguarda em francês. Na arte, rompe com as formas tradicionais de representação, podendo representar coisas de forma deformada.

— Uma cidade artística, né…? Poderia ser interessante do seu próprio jeito — falei. Pode ser uma boa ideia tentar construir galerias de arte e museus também.

Espera um pouco… O mercado já parece como se fosse se tornar algo como Ameyoko. Se eu mesmo assim construísse um monte de galerias e museus, sinto como se Van fosse ficar cada vez mais parecida com Ueno. Talvez eu deva apenas construir um zoológico e pronto.

Se eu tomasse o poder da Tomoe emprestado, seria fácil conseguir isso. Iria conseguir até mesmo recriar a Montanha do Macaco.

No entanto, Hakuya balançou a cabeça.

— Van vai ser a cidade da nossa linha de frente com a Amidônia. Nesse contexto, não podemos deixar que tentem brincar muito com a aparência dela.

Creio que não… — falei. Não podemos contar com uma cidade de aparência artística para ser particularmente defensível, afinal de contas. Nesse caso, acho que teremos que manter a função de Van como uma cidade militar, enquanto a tornamos mais fácil de viver.

Acho que é assim que tem que ser — falei. — Conduza as coisas nessa direção, por favor.

Entendido. — Hakuya se curvou e saiu da sala. Depois, me virei para Ludwin.

— Como está o progresso da implementação das vias para transporte?

— Sir — disse ele. — O Exército e suas forças diretas no Exército Proibido estão fazendo o possível para alcançar este objetivo. Uma estrada de Van até o território do reino foi finalizada e estamos começando a construir vias para as aldeias próximas e menores que estão sob nosso controle. Além disso… construiremos oito pontes sobre os rios, mas…

— Mas o que? — pressionei. O homem parecia evasivo.

Ludwin olhou para mim como se não entendesse o que quis dizer.

— Sir, neste momento, há alguma razão para fazer uma via de transporte para Van? Entendo a importância de ter rotas para abastecimento militar, claro. Porém, se construirmos ruas e pontes para as cidades menores ao redor de Van no tempo em que o Império não reconhece nossa soberania aqui, não será sem sentido quando formos forçados a devolver?

— Verdade… claro, tenho certeza de que o Império irá pedir a devolução de Van. — disse Liscia. — É um pouco revoltante pensar que Julius e seu bando irão usar as ruas e pontes que construímos. — Ela franziu as sobrancelhas.

— Esse não será o caso. — Hakuya imediatamente rejeitou a opinião de Liscia. — Mesmo se devolvermos Van e o Príncipe Herdeiro Julius retornar para cá, ele nunca irá usar a infraestrutura construída pelo reino. Se fizer algo, será tentar eliminar todos os traços da influência do reino em Van. Ele não pode se dar ao luxo de mantê-la por conveniência, já que pode enraizar a simpatia do reino na população local.

— Se fosse eu, usaria qualquer coisa que pudesse, Amidoniana ou não — afirmei.

— Hee hee, tenho certeza de que o faria, Majestade. — Juna entrou na conversa com um sorriso. — Você utilizou aquela comandante com voz rouca como cantora, não foi?

— Ah, quer dizer a Margarita Maravilha? — perguntei. — Ela foi um bom achado.

A princípio contratei Margarita apenas como cantora, mas recentemente ela também realizou a competição amadora de música. A maneira como fez uso total da determinação que a levou a conseguir o posto de comandante nesse país patriarcal, mesmo sendo uma mulher, a maneira como falava sem rodeios, mesmo com homens, estava a fazendo popular com mulheres de todos os lugares.

Opa, saí do rumo da conversa. Deixemos a Margarita de lado e vamos focar em Julius e seus seguidores por agora.

— Eu sei… — falei. — Se for isso que vai acontecer, vamos tentar provocá-los um pouco.

— Provocá-los? — perguntou Liscia.

— Iremos colocar nossos nomes nas pontes — afirmei. — Há oito delas, certo? Bom, vamos entalhar os nomes Ponte Souma, Ponte Liscia, Ponte Albert, Ponte Hakuya, Ponte Ludwin, Ponte Poncho Ishizuka e Ponte Aisha em seus corrimões. Se as próprias pontes falam: “Essa ponte foi construída graças ao Reino de Elfrieden”, a facção anti-reino com certeza irá quebrá-las, não acha?

— Você realmente consegue ser uma figura e tanto, sabia, Souma? — disse Liscia, suspirando meio impressionada e meio espantada.

De toda forma, como não havia objeções, a ideia foi interpretada como aprovada. Além disso, para não importar caso fossem destruídas, concordamos que deveriam ser construídas apenas para serem resistentes, não elegantes.

Isso era tudo que precisava ser resolvido por hora. Uma vez que vimos Ludwin e Hakuya saírem da sala com os planos e medidas que tínhamos acabado de decidir, Liscia me perguntou:

— Se o Império demandar a devolução de Van, você ainda acha que seria difícil de recusar?

Só consegui assentir com a cabeça para aquela questão.

— Bom, sim… Não tenho intenção de mudar meu plano em geral, mas não consigo nos imaginar intimidando a Madame Jeanne. Seria uma grande perda de prestígio para o Império. Não temos o poder para lutar com eles no momento, então se o Império nos ver como hostis, será um problema diplomático.

— Você disse que se encontrou com Jeanne Euphoria, certo? — perguntou Liscia. — É verdade que a invocação de um herói era a maneira deles mostrarem alguma consideração ao nosso país?

Respondi:

— Sim, algo do tipo.

— Quando percebeu isso? — perguntou ela.

— Quando ouvi que a Imperatriz Maria era chamada de santa — falei. — Percebi que qualquer pessoa chamada de santa não faria nada impróprio. Dito isso, pelo que a Madame Jeanne disse, a Madame Maria não gosta muito desse apelido.

— Você confiou no título dela? — perguntou Liscia.

— Pessoas utilizam títulos pois são convenientes — falei. — E, por serem convenientes, também irão tentar mantê-los.

Em uma nação como o Império, a qual cobria um vasto território e era composta por muitas pessoas de diversas raças e culturas, um título como “santa” devia ser útil para acumular poder. Devido a isso deixar ela hastear a bandeira da resistência unida da humanidade contra a ameaça do Domínio do Lorde Demônio. Esse era o porquê de Maria escolher agir como uma santa, continuando a carregar um título que não gostava.

— Interpretando o pedido do Império com uma visão otimista, e levando tudo em consideração, provavelmente seria algo assim… imagino — afirmei.

Não é como se eu tivesse certeza até falar com Jeanne. Mas, após conversar com ela, fiquei convicto disso.

O Império Gran Caos não era um império ruim, como os que aparecem em histórias, ou até mesmo um todo-poderoso e orgulhoso. Era apenas outro país poderoso, desesperadamente tentando se manter.

— É por isso que não podemos abaixar nossas guardas — falei. — Quando enfrentamos um oponente diligente, não há lugar para descuido ou orgulho.

— Verdade — disse Liscia. — Precisamos enfrentar isso com determinação.

Liscia e eu, ambos concordamos com olhares sombrios em nossos rostos.

Seria no dia seguinte que Jeanne Euphoria chegaria, acompanhando Julius, Príncipe Herdeiro da Amidônia, como uma representante na negociação de seu território.

21º dia, 10º mês, 1546º ano, Calendário Continental – Muralhas de Van

— Uau, que visão! Que visão! — gritei.

Olhando para baixo das muralhas do castelo, havia um pouco mais de 50.000 tropas do Exército de Elfrieden em formação ao redor de Van. Em oposição, em uma estimação aproximada, mais de 50.000 tropas do Exército Imperial em formação, com aproximadamente mais 5.000 do Exército Amidoniano próximo a eles, somando um total de mais ou menos 60.000 homens. Tinha ainda mais números de tropas do que durante o último combate.

— Essa é a hora para ficar impressionado? E se esse exército nos atacar? — perguntou Liscia, irritada. Ela estava de pé ao meu lado.

— Não há quase nenhuma dúvida de que perderíamos — declarei, e então olhei para Hakuya, o qual também estava ao meu lado. — Não é?

— De fato, está correto — disse enquanto assentia com a cabeça. — Em número de tropas, número de comandantes, equipamento, treinamento, moral… não importa qual quesito analise, nosso país perde para o Império em todos eles. Se começar uma guerra, nossas forças não teriam chance de vencer.

Dizem que o rumo da guerra é decidido pelo céu, terra e pessoas. Ou seja, a vantagem temporal do céu, a vantagem territorial da terra, e a união harmoniosa entre as pessoas.

A vantagem temporal estava com o Império, o defensor da Declaração da Humanidade, enquanto a vantagem territorial estava com as forças do principado. Se me perguntassem se o reino tinha uma união harmoniosa que conseguiria bater de frente com os outros dois quesitos, eu teria que dizer que não. Não fazia muito tempo desde que o Exército e a Força Aérea tinham jurado aliança comigo, então mesmo que estivessem motivados a lutar contra os invasores Amidonianos, seria difícil manter sua moral contra as forças muito superiores do Império.

Resumindo, não éramos superiores em relação às forças combinadas do Império e da Amidônia em nenhuma das três categorias.

— Gostaria que tivéssemos, no mínimo, a vantagem de equipamento… — falei.

 Um tipo de tropa que a força Imperial tinha, pelo que eu conseguia ver de onde estava, era composta de rinossauros carregando canhões. Ouvi sobre rinossauros serem usados como armas de cerco, mas parecia que o Império estava usando-os como plataformas móveis de artilharia.

Na verdade, já tive a mesma ideia, mas antes de podermos colocar canhões nos rinossauros, eles precisavam ser treinados para não se assustarem quando escutassem o som deles atirando. Nossos rinossauros foram reunidos com as habilidades de negociação da Tomoe, porém sem previsão de quando o treino seria finalizado, o plano foi arquivado.

Era frustrante ver que um tipo de tropa que eu criaria já estava sendo usado pelo Império, mas, bem, era algo que um militar amador conseguiria criar se pensasse um pouco. Se houvesse demanda, mais ideias como essa deveriam ser colocadas em prática o mais rápido possível.

Bom, de toda forma, do jeito que as coisas estavam, não conseguiríamos lutar.

Nunca tive a intenção de lutar, para começo de conversa, mas se estivéssemos em uma posição onde pudéssemos fazer isso, seria mais uma carta em nossa manga para a negociação. Vendo por outra perspectiva, a força espalhada diante meus olhos, a qual poderia facilmente nos derrotar, era uma carta na manga do outro lado.

Enquanto eu sabia que isso aconteceria, ainda era uma situação complicada de estar.

— Senhor, tem um tipo de tropa com que não estou familiarizada — disse Aisha, a qual estava examinando as forças inimigas à distância.

— Um tipo de tropa com que não está familiarizada? — perguntei.

— Tem um grupo revestido com armadura completamente preta! — declarou.

— Todos de preto? — perguntei. — Espera, uau, me surpreende que consiga ver isso… — As pessoas pareciam pequenos grãos de arroz daquela distância.

— Os elfos negros têm bons olhos! — Aisha estufou seu peito com orgulho. — Aquele grupo com armadura preta está carregando algum tipo de arma longa.

—  Acho que o mais provável é que seja o “Corpo de Blindagem Mágica” — explicou Hakuya.

Pronto, um nome desconhecido.

— Corpo de Blindagem Mágica? — perguntei.

— Podemos dizer que são a versão anti-magia do lanceiro pesado, creio eu — disse Hakuya. — Aquela armadura preta produz o tempo todo uma barreira que bloqueia todo e qualquer tipo de magia. Quando formam fileiras e avançam, é dito que cada passo que dão é mais um passo que o território do Império se expande. São o tesouro do Império, o qual é profundamente orgulhoso deles.

Hm… Se me lembro bem, lanceiros são um batalhão com longas lanças feitas para serem usadas contra a cavalaria, certo?, pensei. Esse conhecimento vem de jogar jogos de simulação de guerra, mas eles são um pelotão que forma uma falange contra a cavalaria que ataca, esticam suas lanças e contra-atacam a investida. Se me lembro bem, conseguem parar a cavalaria, que trata a mobilidade como sua vida. Dependendo da situação, creio que consigam ser um poderoso tipo de tropa, mas por causa de utilizarem principalmente a tática de espera, podem ser difíceis de serem bem usados.

— Mesmo que consigam neutralizar a magia, são mesmo um tesouro? — perguntei.

Hakuya me olhou desapontado, então em retorno me perguntou:

— Se lembra da razão pela qual armas de fogo nunca foram desenvolvidas neste continente?

— Já que a magia é mais poderosa e tem um alcance melhor, não foram necessárias, certo? — falei. — Por isso que foram desenvolvidos apenas canhões para o uso no mar, onde a magia é mais fraca, ou durante um cerco, onde ainda conseguem fazer um bom trabalho.

— Sim — disse Hakuya. — Também há o fato de que peles de criaturas que vivem nesse continente são duras e rígidas, então uma arma de fogo comum nem ao menos as machucaria.

Em outras palavras, o fato de que não conseguiam usá-las para caçar era outro motivo pelo qual armas de fogo nunca foram desenvolvidas.

Se as pessoas daqui tivessem criado o rifle, o qual aumenta o poder de penetração da bala fazendo-a girar, as coisas poderiam ter sido diferentes. De qualquer forma, foi uma invenção que surgiu por que a tanegashima5Um tipo de arma parecida com uma espingarda. Aparentemente foi a primeira arma de fogo utilizada no Japão, introduzida pelos portugueses por volta do ano de 1545., a qual simplesmente atirava uma bala, já havia se espalhado. Eles não tinham a base para que essa pesquisa acontecesse.

No momento em que pensei que talvez devesse desenvolver o rifle para eles, Hakuya disse:

— Além disso, temos encantamentos acopláveis nesse mundo. Alguns itens defensivos são melhores que outros, mas têm um encantamento que reduz o dano acoplado a eles. O reverso também acontece, uma arma vai normalmente ter um encantamento acoplado para aumentar o dano e quebrar aquela defesa.

— Mas que diabos? — falei. — Parece um jogo de Acerte a Toupeira…

— Com todo o respeito, acredito que essa é forma como a tecnologia avança —afirmou Hakuya. — E, referente aos encantamentos acoplados às armas ou armaduras, quanto maior for a massa do item, mais poderoso ele é. Em outras palavras, nesse mundo, a bala é mais fraca que uma flecha e a flecha, mais fraca que a lança.

Isso significa que mesmo que eu desenvolva o rifle, as pequenas balas não serão tão fortes assim?, pensei. Um pelotão de fuzileiros parece cada vez menos prático. Bom, não quero tornar esse país em uma sociedade armada, então realmente não ligo.

Hakuya continuou:

— Em um mundo assim, tem um grupo de pessoas as quais mágica e bombardeio com wyverns não atingem, cavalaria não consegue atravessá-las e, por serem do tamanho de humanos, é inviável atingi-los com canhões. Esse grupo com armadura negra segue lentamente avançando. Da perspectiva de seus inimigos…

— Isso seria um pouco horripilante, entendi… — falei. — Parecem as forças do inferno.

Em um campo de batalha aberto, provavelmente são invencíveis, pensei. Se eu conseguisse lutar em outro lugar, como um morro ou pântano difícil de andar, ou se conseguisse atraí-los para um local cheio de armadilhas para quebrar sua formação e os cercar…

Mas todas essas ideias dependiam de eu lutar uma batalha defensiva. Era difícil para o invasor escolher onde atacar. Nesse sentido, conseguia entender o motivo pelo qual falavam sobre cada passo expandir o território do Império.

— Além disso, o Império tem outros batalhões poderosos junto com o Corpo de Blindagem Mágica — disse Liscia, olhando para os inimigos. — Eles têm os cavaleiros dos grifos, os quais rivalizam não só com a cavalaria wyvern, mas também com os cavaleiros de dragões em força. Eles têm um batalhão de magos que é maior e melhor que o nosso. Também têm um batalhão de rinossauros treinados para combate. Se vamos lutar contra o Exército Imperial, significa que vamos ter que lutar contra todos esses de uma vez.

Por que, é… Sim, realmente, percebi. O inimigo tinha mais do que só o Corpo de Blindagem Mágica.

Era um pensamento superficial de um amador que me fez acreditar que ganharia se pudesse escolher a localização da batalha.

— Realmente não somos páreos para o Império, né? — falei.

— Souma… — Liscia parecia preocupada, então sorri para ela.

— Não será agora — falei para ela. — Mas eventualmente irei melhorar esse país para que consiga ficar ombro-a-ombro com eles.

Bati uma palma para dar o sinal.

— Agora, que tal irmos recepcionar a Madame Jeanne?

Eles estavam no salão de audiência em Van.

Nesse espaço, com cores e decorações muito mais ostensivos que os de Parnam, a irmã mais nova da Imperatriz Maria do Império Gran Caos, Jeanne Euphoria, e o filho mais velho do Príncipe Soberano de Amidônia Gaius VIII, Julius, estavam de pé em um tapete vários passos abaixo de onde eu estava, sentado no trono.

Então esse jovem era o Julius. Ele parecia estar no meio de seus vinte anos – um homem belo com aparência calculista, como Hakuya, mas Julius parecia ainda mais frio. Ele parecia estar suprimindo suas emoções, mas em seus olhos consegui ver sua hostilidade para comigo cintilando como ardentes chamas azuis.

Em contraste, Jeanne era realmente majestosa. Aquele era o território inimigo para ela, então a coragem que mostrou em vir sem nenhum guarda-costas, apenas com Julius, me impressionou profundamente.

Conforme saudamos os dois, ficamos posicionados com Liscia e Hakuya em cada lado meu e Aisha de pé, diagonalmente atrás de mim, como minha guarda-costas.

Vendo isso, Jeanne inclinou sua cabeça para o lado.

— Isso é surpreendente. Esperava que nosso encontro tivesse um número maior de soldados assistindo.

— Se eu trouxesse muitos soldados para a reunião, apenas deixaria vocês dois incomodados, não? — perguntei.

— Entendo — disse ela. — Você é corajoso.

Jeanne falou como se estivesse impressionada, mas por dentro eu estava sorrindo ironicamente.

Era apenas que eu já havia lido uma narrativa histórica (se foi Recordações de um Grande Historiador ou Romance Dos Três Reinos eu não lembro) em que um certo governante recebeu um emissário inimigo que tinha uma atitude parecida com a de Jeanne. Aquele emissário disse coisas como: “Posicionar tantas tropas para receber uma única pessoa é uma forma de mostrar respeito em seu país?” e “Ou você é um covarde que não se sente seguro sem seus soldados o protegendo?” Aquilo humilhou o governante, e apenas aconteceu de eu lembrar, mas… decidi não deixar Jeanne saber desse fato.

— Claro, com aquela pessoa atrás de você, deve se sentir bem seguro. — Jeanne perceptivamente olhou para Aisha. Talvez fosse porque compartilhavam de algo em comum como guerreiras, mas ela tinha julgado precisamente a habilidade de Aisha. — Ela é uma boa guerreira, consigo perceber. Pediria por uma disputa com ela, mas poderia ser um pouco difícil de ganhar. Você tem uma boa vassala, Sir Souma.

— Obrigado… — falei.

Não tinha como eu saber o quão séria ela foi em seu elogio, mas julgando pelo quão tensa Aisha parecia, Jeanne não podia ser subestimada como uma guerreira.

— Você também — prossegui. — É bem corajoso de sua parte ir ao encontro do rei de outra nação sem trazer guardas como escolta. Não se preocupou que eu pudesse te assassinar aqui?

— Eu vim como uma representante da paz. — Jeanne sorriu. — Por que eu deveria ter medo de um possível perigo?

Consegui perceber que ela atuava bem. Ela podia não ter guardas consigo, mas talvez operadores secretos tivessem entrado para cuidar dela. Mesmo naquele momento, em algum lugar que não pudéssemos ver, poderiam estar competindo ferozmente contra Juna e seus marinheiros.

Após ela, olhei para Julius.

— Essa é nossa primeira vez nos vendo. Sou Souma Kazuya.

— Sou o Príncipe Soberano de Amidônia, Julius.

Sem esconder a hostilidade em seus olhos, Julius se intitulou daquele jeito. Ele devia ter herdado o título com a morte de Gaius VIII. Com a nossa ocupação de Van, ele ainda não havia sido formalmente coroado, mas eu, sendo um rei provisório, estava no mesmo barco, então não apontei esse fato.

— Agora, vamos ouvir o porquê de vocês dois estarem aqui — falei.

Julius imediatamente abriu sua boca.

— Me deixe ir direto ao ponto: quero que devolva Van de uma vez.

— Sir Julius… — Jeanne parecia inquieta pelo descontrole dele, mas Julius continuou sem se importar.

— Nossa nação assinou a Declaração da Humanidade. No texto do acordo dizia: “A mudança das fronteiras de uma nação à força será considerada inadmissível.” O Reino de Elfrieden ocupou Van utilizando-se da força. Sendo assim, em concordância com a declaração, vim para cá com a Madame Jeanne, como uma representante do Império Gran Caos, almejando a devolução de Van e da área ao redor.

— Isso soa terrivelmente egoísta. — Apoiei meus ombros nos braços do trono e minha bochecha em minhas palmas das mãos, olhando para baixo, para Julius. — Vocês que começaram isso invadindo Elfrieden primeiro. Primeiro tentam se expandir à força, e então, quando perderam, buscaram a Declaração da Humanidade para se proteger enquanto se agarram ao poder do Império para buscar a devolução de seu território. Não acha isso patético?

— A decisão de invadir Elfrieden foi uma que meu pai, Gaius, tomou sozinho — disse Julius rigidamente.

— Você o acompanhou na batalha, então compartilha de seus crimes — afirmei. — Além disso, antes de iniciar a negociação para a devolução de seu território, um pedido de desculpas por invadir meu país não deveria ocorrer primeiro?

— Ugh…

— Sir Julius — disse Jeanne. — Sir Souma está correto. Estamos em posição de pedir para que ele devolva suas terras. Temos que começar com você mostrando sua seriedade.

Julius parecia extremamente envergonhado pela ideia, mas com sua única esperança, Jeanne, o pressionando a fazer isso, ele, muito relutantemente, muito mesmo, abaixou a cabeça.

— Ainda que a invasão ao seu país tenha sido uma decisão exclusivamente de nosso antigo governante, Gaius, foi a minha falta de virtude que me atrapalhou a impedi-lo. Permita-me pedir desculpas por isso.

Não parecia muito com um pedido de desculpas, mas parecia ser o máximo que poderíamos esperar.

Julius continuou falando:

— De toda forma, é o seu país que está violando nossa fronteira. Como participantes da Declaração da Humanidade, é de nosso direito requisitar que o Império nos ajude a conseguir nosso território de volta.

— É o que Julius diz, mas qual é a opinião do Império sobre isso? — perguntei, levando a conversa até Jeanne.

Ela deu de ombros.

— O Império preferiria não ajudar a Amidônia, que realmente está colhendo o que plantou… mas, como signatários da Declaração da Humanidade, não tivemos escolha a não ser responder ao seu chamado.

— Basicamente, está dizendo que o Império irá pedir para que retornemos todos os territórios ocupados, incluindo Van? — perguntei.

— Sim, seria isso mesmo.

É, pensei. Imaginei que o Império tomaria essa posição. É um pouco irritante ver Julius agir como se fosse óbvio que isso fosse acontecer, mas já estava dentro do esperado. Então, deixe-me também dar uma resposta que esperei dar.

— Eu recuso.

— Quê…?! — disse Jeanne, surpresa.

Julius ficou por um momento sem saber o que dizer. Talvez não esperasse uma rejeição tão clara. Entretanto, imediatamente se moveu e fez uma expressão furiosa, dizendo:

— Ficou maluco?! Pensando em desafiar a Declaração da Humanidade!

— Minha intenção não é desafiar a Declaração da Humanidade — falei. — No entanto, não posso tolerar a forma como a Amidônia faz as coisas. Primeiro invadem o território de Elfrieden, e então, quando fazemos um contra-ataque, vocês se queixam sobre nós estarmos mudando as fronteiras à força. Isso não faz sentido.

— Isso… foi tudo decidido pelo governante anterior, Gaius, sozinho… — gaguejou Julius.

— Isso é puro sofismo e você sabe disso, não? — perguntei.

Julius parecia não saber o que dizer, a princípio, mas então respondeu:

— Diga o que quiser, não vai mudar o fato de que as pessoas em meu país estão vivendo sujeitas à sua ocupação. Eu, como governante deste país, devo libertar meu povo.

Esse era seu argumento. Libertação da ocupação, né…?

— Me pergunto se as pessoas de Van desejam ser libertadas — falei.

— O que? — balbuciou Julius.

— Sir Julius — falei. — Não viu as ruas de Van em seu caminho para cá?

Em resposta à minha pergunta, Julius arregalou os olhos, e ele imediatamente me encarou.

— Van é a cidade em que nasci e cresci. Conheço-a melhor que você.

— Conhece…? Bem, então o que acha da cor de Van agora? — perguntei.

— Cor? — perguntou ele com hostilidade. — Vi algumas casas com seus tetos e paredes pintadas com cores extravagantes, deselegantes, mas o que isso tem a ver?

É… Bem, talvez não fosse errado chamar de deselegantes.

— Cada um tem seu próprio senso de estética, então não comentarei sobre isso — falei. — Entretanto, Sir Julius, se as pessoas estivessem sofrendo diante de nossa suposta opressão, acha que iriam querer tornar seus telhados e paredes mais coloridos?

Escolhi minhas próximas palavras cuidadosamente, para não fazer Julius se irritar.

— Se um governante é opressivo, as pessoas irão tentar agir de forma para que não se destaquem. Isso é porque, caso fossem pegas fazendo algo chamativo, não há como saber que tipo de desastre aconteceria com elas. Então quanto mais oprimidas as pessoas, menos ouvirá elas reclamando. Não mostrariam seus sentimentos ou atitudes, mantendo seus verdadeiros sentimentos presos em seus corações. Jamais sonhariam em fazer algo como pintar seus telhados e paredes com cores chamativas.

Nessa hora, pausei por um momento para olhar nos olhos de Julius.

— Agora, diga-me, como era a cor de Van quando você e seu pai estavam aqui?

Em resposta à minha pergunta, Julius cerrou seus dentes. Óbvio que o faria.

Quando entrei em Van, a cor que senti foi cinza.

As labirínticas ruas, que nem mesmo devidamente divididas em distritos estavam, tinham apenas casas com paredes cinzas e tetos com cores de terra, sem o mínimo sinal de personalidade. Ainda que não participassem de um esquema de cores unificadas, todas pareciam padronizadas porque os residentes desta cidade não tinham seus corações livres.

— Entre Van sob meu governo, e quando Van estava sob seu governo, qual realmente parece “estar ocupada”? — perguntei

— Está… está querendo dizer que éramos opressivos? — gritou Julius.

— Sim, pois é um fato que eram — falei. — Parece que a maior parte do orçamento nacional era usado para cobrir despesas militares. As taxas que seu povo paga deveriam ser devolvidas em forma de investimentos para o bem-estar da população. Ao invés de manter sua cidade, suas vias ou apoiar a indústria, vocês pressionaram seu povo com grandes taxas que iam apenas para o exército. Qual parte disso tudo não era opressiva?!

— Seu canalha! — gritou Julius, se lançando em minha direção.

— Sir Julius! — Jeanne se irritou, levantando uma mão para o parar.

Ainda que Julius tivesse parado após dar apenas meio passo para frente, ele ainda rangeu seus dentes, frustrado. Não permiti que carregassem armas durante a audiência, mas seria uma situação perigosa se Jeanne não tivesse interferido.

— Aisha, solte a empunhadura de sua espada também — falei.

— Sim senhor…

Fui capaz de sentir sede de sangue atrás de mim, então achei melhor a parar. Sua voz parecia desanimada, como quando uma criança acaba de levar uma bronca.

Entretanto, ela não deveria deixar aquilo a abalar. A razão pela qual pude falar aquilo descaradamente para Julius foi porque sabia que, caso necessário, Aisha estaria lá para me proteger.

— Sir Souma… Gostaria de pedir para que tente não provocar Sir Julius — protestou Jeanne, suspirando.

— Apenas falei a verdade — respondi. — Governar a nação e trazer alívio às pessoas… esses dois são os deveres de um governante. Eles, no entanto, taxaram exacerbadamente as pessoas para que pagassem pelos desperdícios de despesas militares. Essa é praticamente a definição de opressão.

— E de quem é a culpa disso?! — gritou Julius. — Se a família real de Elfrieden não tivesse roubado terras do meu avô…!

— De novo não… — Após ouvir Julius balbuciar o mesmo velho argumento, deixei escapar um suspiro. — A família real da Amidônia clama por vingança contra Elfrieden a todo momento, mas nem você nem Gaius fizeram parte desses eventos. Além disso, eu mal cheguei nesse mundo. Que tipo de ressentimento você poderia ter especificamente contra mim?

— Ah, mas…!

— Se tivermos que falar de alguém, foi seu país que continuamente tentou prejudicar o meu — afirmei. — Hakuya…

— Sim senhor. — Hakuya pegou um pedaço de papel enrolado dentro de um tubo cilíndrico e entregou aos dois.

No papel estavam escritos alguns nomes. Quando viram esses nomes, Jeanne parecia confusa, mas Julius fez uma expressão como se tivesse visto algo desagradável.

— O que… é isso? — perguntou ela.

Com uma reverência, Hakuya explicou:

— Os nomes que estão vendo escritos aqui são nobres do Reino de Elfrieden, os quais foram incitados à insubordinação pelo Principado de Amidônia. Alguns deles se insurgiram durante o reino do rei anterior e foram derrubados. Amidônia os incitou, fomentando rebelião, os tentando à corrupção e os encorajando a adotar uma posição não cooperativa com a família real.

— Minha nossa…

Quando Jeanne o olhou com um olhar frio, Julius rangeu seus dentes.

Pareceu que eles estavam tentando atiçar os três duques, então pedi para Hakuya investigar e, meu amigo, achamos coisas bem sombrias. Pude ver os nomes dos nobres corruptos que fizeram parte da rebelião na lista, mas alguns dos nomes que vi pertenciam a nobres que tinham se recusado a tomar um lado no conflito recente. Quando eu voltasse para a capital real, iria ter que fazer algo sobre isso.

— Madame Jeanne — disse Hakuya. — Enquanto falavam coisas da boca para fora sobre a Declaração da Humanidade, o Principado da Amidônia estava envolvido com todas essas desonestidades por trás dos panos. É difícil ver como conseguem falar sobre vingança contra nosso reino após tudo isso.

— Mesmo quando falam sobre essa tal vingança, apenas a trazem à tona quando os beneficia. — Encarei Julius enquanto falava, seguindo o exemplo de Hakuya. — “Nosso reino é pobre por causa do reino”, “todos estão passando fome por culpa do reino”, “nosso povo sofre trabalhando demais por causa do reino”, “as taxas exacerbadas que cobramos e que vai para o nosso exército ao invés da população é devido ao reino.”

— O que está tentando dizer? — demandou Julius.

— É incrível como é conveniente — falei. — Se você usar essa conversa fiada como a desculpa para a vingança, consegue esconder os erros do governo e redirecionar a raiva do povo para Elfrieden.

— Maldito! Como ousa falar isso! — exclamou Julius, correndo em minha direção.

— Sir Julius! — Jeanne se irritou e o parou novamente. E então, se virou para mim com um olhar igualmente duro. — Sir Souma, acredito ter pedido para que não o provocasse.

— Sinto muito… — falei. — Apenas queria que visse que também estamos furiosos com o comportamento da Amidônia.

— Eu… compreendo — disse Jeanne.

— Obrigado — falei. — Agora, tenho uma proposta.

Me virei para eles, como estivesse dizendo: Agora é hora de irmos aos negócios.

— Sir Julius, poderia sair deste local?

O rosto de Julius se contorceu de raiva.

— Não seja absurdo! Por que eu deveria me retirar das negociações que irão determinar o destino da capital da minha nação?!

Um rosto inteligente e bonito mostrando toda aquela raiva era, no mínimo, cinquenta porcento mais intimidador que uma pessoa comum séria. Antes de vir para este mundo, eu provavelmente me sentiria pressionado com essa atitude ameaçadora, mas… já havia passado mais ou menos meio ano como rei, lidando com pessoas muito mais assustadoras, como o próprio Gaius, em situações de vida ou morte. Após tudo isso, esse nível de intimidação não era pressão o suficiente para me intimidar.

— Na verdade, é simples — afirmei. — Para começo de conversa, não é com a Amidônia que preciso negociar.

— O que disse?! — gritou ele.

— Estou negociando pois quero que o Império reconheça minha soberania sobre Van — afirmei. — O Império está tomando a posição de não poder reconhecer a mudança de fronteiras pelo uso da força, então está aqui para negociar porque quer que eu devolva Van, certo? Nesse caso, a situação pode ser resolvida inteiramente com negociações entre o reino e o Império.

Essa sempre foi uma negociação entre o reino e o Império. O principado nunca foi nada mais do que um extra. Se o ressentimento dele fosse atrapalhar o seguimento tranquilo da negociação, eu ficaria mais feliz com ele sendo removido dela. Jeanne parecia também entender isso.

— Sir Julius… — disse ela. — Posso pedir que deixe isso comigo?

— Madame Jeanne? — exclamou ele. — Mas…

— As negociações não irão a lugar nenhum com esse ataque de ambos — disse Jeanne. — O Império não deseja passar seu tempo mediando disputas de outras nações. Definitivamente reivindicarei Van, então gostaria que deixasse isso comigo.

— Isso é… muito tendencioso da sua parte, não? — perguntou Julius, irritado. Ele parecia pronto para seguir argumentando, mas Jeanne o interrompeu na mesma hora.

— Então o Império não terá mais nada a ver com essa questão e você será bem-vindo para negociar sozinho. Na minha opinião pessoal, a culpa é da Amidônia nessa ocasião. Estamos fazendo o que podemos para o ajudar por ser um signatário da Declaração da Humanidade, mas se achar inviável confiar em nós, o Império irá se retirar dessa negociação.

Julius sabia que o principado não conseguiria reivindicar Van por conta própria. Se o Império indicasse que iria se retirar das negociações, não havia mais nada que pudesse dizer.

Ele parecia angustiado, engasgado com as palavras.

— Você… irá conseguir Van de volta para nós, certo?

— Juro pelo nome de minha irmã, Imperatriz Maria Euphoria.

— Então conto com você. — Julius curvou sua cabeça para Jeanne, e então saiu da câmara de audiência.

Após vermos que ele saiu, Jeanne e eu olhamos um para o outro e suspiramos.

— Sinto muito — disse Jeanne. — Nossos signatários podem ser um pouco complicados de lidar.

— Compreendo sua dor…

Ambos sorrimos. A fim de escondermos nossos verdadeiros sentimentos, nós dois naturalmente fingimos um sorriso. O clima hostil havia sumido do ambiente, mas o clima ainda estava bem tenso. Não, na verdade, estava mais tenso do que antes.

Essa conversa iria decidir o que iria acontecer a partir de então com ambos, o reino e o Império, então isso provavelmente era inevitável.

— Poderia ser que você propositalmente provocou Sir Julius para levar a conversa até esse ponto? — perguntou Jeanne.

Balancei minha cabeça com um sorriso sarcástico.

— A maior parte do que eu falei foi sério. Graças ao pai dele e a ele, a recuperação do reino foi atrasada e eu tive que fazer um monte de trabalho desnecessário. Quis desabafar um pouco.

— É mesmo? — disse Jeanne, não parecendo se importar muito. E então ela levou uma mão ao peito e se curvou com educação. — Permita me apresentar novamente, Senhor Souma. Sou Jeanne Euphoria, emissária do Império Gran Caos. Vim representando minha irmã, Maria Euphoria.

— Seja bem-vinda, Senhorita Jeanne — falei. — Sou o Rei (provisório) de Elfrieden, Souma Kazuya.

Para recomeçar do zero, Jeanne e eu nos apresentamos novamente.

Jeanne estava sendo um pouco taciturna6De poucas palavras, mal-humorada. antes, mas nesse momento passou a utilizar um tom alegre, completamente oposto àquilo. Ela sorriu para Liscia, a qual estava atrás de mim.

— Estou aliviada por te ver bem, Princesa Liscia.

— Você também parece muito bem, Madame Jeanne — disse Liscia, retornando o sorriso.

— Hã? Vocês duas se conhecem? — perguntei.

— Sim — afirmou Liscia. — Nos vimos apenas uma vez, quando éramos pequenas. Antes da aparição do Domínio do Lorde Demônio, não é?

— Sim, exatamente — confirmou Jeanne. — Se me lembro bem, na época eu forcei o ministro responsável por conversar com seu rei anterior, Sir Albert, a me levar junto. Devido à nossa idade semelhante, brincamos juntas.

Entendi, pensei. Quando ambas são da realeza, têm esse tipo de conexão também, hein.

Então Jeanne olhou o corpo de Liscia, dos pés à cabeça, e disse:

— Agora deve estar ainda mais forte do que era. Consigo dizer só de te olhar.

— Posso dizer o mesmo de você — disse Liscia. — Naquela época, nunca consegui te atingir, nem ao menos uma vez.

Opa, espera aí! Como passamos de elas brincando para ambas se atacando?!

— Vocês duas eram muito molecas… — murmurei.

— Naquela época, mesmo o sempre calmo Marx ficou bravo conosco — disse Liscia com nostalgia.

— Nosso ministro de relações exteriores também estava aos prantos. — Jeanne gargalhou. — Ha ha ha!

Não, não, não deveria rir disso… Me senti mal por Marx e esse ministro do Império, cujo rosto nunca vi.

— Bem, de toda forma, já chega de pensar nos velhos tempos — falou Jeanne. — Acho que é hora de conversarmos sério.

— Eu sei — falei. — Primeiro, vamos para outro lugar.

Eu queria ter essa chance de falar honestamente com o Império. Para tornar isso possível, o local da reunião deveria ser um onde ambos os lados se sentissem confortáveis. Eu também queria uma caneta e papel.

— Mas, primeiro… Liscia, poderia chamar Serina para mim? — pedi.

Liscia assentiu e deixou a sala. Um pouco depois, uma mulher vestindo uniforme de criada entrou.

Era a criada pessoal de Liscia, a criada chefe Serina. Ela, uma moça linda e intelectual que era um pouco mais velha que eu, levantou a barra de sua saia e fez reverência.

— Vim em resposta à sua ordem, Vossa Majestade.

— Serina — falei. — O herdeiro… não, o príncipe soberano de Amidônia, Julius, está na sala de convidados. Posso levar um tempo falando com a Madame Jeanne, então comece o banquete sem nós e faça com que ele se sinta bem-vindo.

Quando dei essa ordem, Serina se curvou respeitosamente.

— Muito bem. Nesse caso, senhor, gostaria de pedir permissão para abrir uma garrafa bem envelhecida de tequeur da adega do castelo.

No momento em que ela disse isso, pensei ter visto um brilho suspeito no olhar de Serina.

Será que ela quer beber aquela bebida alcóolica, que não lembro o nome?, me perguntei. Ela parece ser do tipo controlada, a meu ver, mas talvez possa ser uma cachaceira. Está dizendo que é para nosso convidado quando, na verdade, é ela que quer beber?

— Irei deixar a questão a seu critério — falei, por fim. — Desde que nosso convidado seja devidamente entretido.

— Entendido. Irei pessoalmente providenciar o entretenimento de Sir Julius.

Com essas palavras e um sorriso frio, Serina se curvou e saiu da sala.

Seu sorriso me preocupou, mas ela disse que iria o entreter, então achei que provavelmente daria certo. Enquanto pensava nisso, olhei para perto de mim e vi Liscia e Hakuya fazendo caretas.

— O-O que foi, vocês dois? — perguntei.

— Souma… tequeur é famoso por ser uma bebida forte — disse Liscia.

— Tem um ótimo gosto, o qual encoraja a beber muito. Entretanto, se alguém que não costuma beber fizer isso, irá ser rapidamente enviado para a terra dos sonhos. Normalmente, é comum beber algumas gotas misturadas com uma xícara de chá ou suco — explicou Hakuya, parecendo estar com dor de cabeça.

— Hã? Espera, se ela for servindo copos disso…

— O banquete acabará em menos de dez minutos.

— Ela não tem intenção de entretê-lo?! — exclamei.

A criada chefe Serina. Ela tinha uma beleza elegante, fazia seus deveres perfeitamente, era educada e também conseguia mostrar grande consideração, tudo isso a fazendo ser uma criada impecável. Entretanto, também era um pouco sádica demais.

Quando se tratava de garotas fofas, ela sempre queria traquinar com elas. Não maltratar, traquinar mesmo. Não que fizesse algo que as machucasse, só gostava de agitar um pouco o senso de vergonha delas.

Deixado sozinho com Serina, Julius não tinha chance nenhuma.

Bom, o objetivo do banquete era de prevenir que Julius descobrisse o que ocorre durante nossa negociação com o Império, pensei. Se ela conseguir o fazer beber até cair, é uma forma de alcançar o objetivo…

— Apenas desta vez, me sinto mal por Julius — disse Liscia, com olhos sem nenhuma emoção, como os de peixe morto. — Essa mulher, Serina, simplesmente gosta de brincar com esses tipos de arrogantes como ele.

— P-Parece que tem experiência própria com isso… — falei.

— Sempre que eu bagunçava, Marx era o responsável por me dar bronca, mas Serina era sempre a responsável por me disciplinar — disse Liscia. — Claro, por ser uma criada, ela não podia me punir fisicamente. Pior, ao invés disso, partia para ataques psicológicos. Se… se ela só não soubesse sobre aquilo… Não, tem aquilo também, não tem…? Aah! Por que ela sempre, sempre tem que aparecer nos piores momentos possíveis?

Enquanto tentava consolar Liscia, a qual estava segurando sua cabeça com as mãos, deixei sair um suspiro.

— Quanta coisa ela tem para te chantagear…?

— He he. Esse realmente é… um país interessante. — No canto de minha visão, vi Jeanne se esforçando para conter um sorriso.

Após isso, mudamos de local e mostrei para Jeanne o escritório de assuntos governamentais. Fomos para ele porque, se íamos nos sentar e negociar por um tempo, senti que esse era o melhor lugar para o fazer.

Era grande o suficiente para suportar um bom número de pessoas, e tinha uma boa quantidade de canetas e papéis por lá. Ser capaz de facilmente achar algum documento que possivelmente precisaríamos era outro ponto positivo.

Ainda que quando Jeanne entrou no cômodo, a primeira coisa que chamou sua atenção tenha sido uma cama no canto…

— Sir Souma, por que desta cama? — perguntou.

— É minha — afirmei. — Estou muito ocupado para ter um quarto próprio.

— Você dorme no escritório de assuntos governamentais?!

— Fico envergonhado em admitir que sim. — Hakuya, não eu, afirmou enquanto parecia profundamente envergonhado.

Entretanto, não era o fato de que eu dormia no escritório que surpreendeu Jeanne.

— Nunca imaginei que existia um rei fazendo a mesma coisa que minha irmã…

— Oi? — perguntei, surpreso.

Sua irmã… Essa seria a Madame Maria, certo? Hã? A imperatriz também dorme no escritório de assuntos governamentais?!

Quando a perguntei sobre isso, Jeanne respondeu envergonhada:

— Ela tem seu próprio quarto também, claro, mas quando está ocupada com assuntos administrativos, dorme em uma cama que foi colocada no escritório, sim. O pior de tudo, no caso de minha irmã, é que ela não se contentou com uma cama simples. Pediu uma apropriada, confortável. O que só torna as coisas piores.

Fiquei sem palavras.

Por que será?, pensei. Agora, sinto uma enorme simpatia pela Santa do Império.

— Minha irmã precisa perceber que é a governanta de um vasto império — disse Jeanne. — Sempre a digo para não fazer isso e considerar como isso pode parecer para seus vassalos, mas tudo que recebo em resposta é: “Não vejo problema algum. Durmo tão bem nessa cama.” Ela não me escuta nem um pouco.

Enquanto Jeanne dizia isso junto com um suspiro, por alguma razão, Hakuya estava concordando.

— Eu entendo. Perdi as contas de quantas vezes aconselhei Sua Majestade para providenciar um quarto para si e dormir lá. Ainda assim, toda vez que o faço, ele nega com um simples “mas assim é mais eficiente.”

— Ah, entendo — disse Jeanne. — Sei que ela está cansada do trabalho, mas gostaria que considerasse um pouco mais a forma como seus subordinados a veem. Especialmente por minha irmã ter essa imagem de ser uma santa, preferiria que ela não fizesse nada muito inadequado.

— Consigo entender isso — disse Hakuya. — Desisti desse ponto de vista. Sua Majestade pode carregar o título de “herói”, mas tudo que faz é tão…

Eles dois continuam só dizendo: “entendo, entendo”, pensei. Por que estão se dando tão bem?

— Acho bom que Sir Souma faça isso, ele pelo menos faz por motivos racionais — disse Jeanne. — Quando minha irmã o faz, é por pura preguiça. Ela também pode ser um pouco cabeça oca de vez em quando.

— Bom, pelo menos isso é fofo — afirmou Hakuya. — No caso de Sua Majestade, creio que é pior justamente por ter planejado. Por que o rei, o qual é tão bom em escutar opiniões sobre questões estatais, finge que não escuta uma palavra quando é um conselho para sua vida pessoal?

— Percebo que está passando por muita coisa também, Sir Hakuya — disse Jeanne.

— Não, não, Madame Jeanne. Deve ser pior para você — disse Hakuya.

Jeanne e Hakuya realmente se deram bem. Parecia que iriam trocar um aperto de mão firme a qualquer momento.

E então, neste exato momento, a “Associação de Vítimas de Mestres Preguiçosos” foi formada. Era uma piada da qual não consegui rir. Estava ficando constrangedor para mim e eu queria mover a conversa para o próximo tópico rapidamente, mas se eu interrompesse naquela hora iria levar uma bronca e levar uma bofetada com um leque de papel, então decidi ficar quieto por um tempo.

Esperei cuidadosamente até a conversa deles acalmar um pouco, após isso, limpei minha garganta de forma barulhenta e fiz um gesto para que Jeanne se sentasse à longa mesa no centro da sala.

— Bom, de toda forma, sente-se. Vamos para as negociações.

— Ah… sim. Tudo bem. — A expressão de Jeanne mudou e ela sentou à mesa.

Uma vez que ambos nos sentamos de frente um para o outro na longa mesa, Jeanne me olhou nos olhos e começou:

— Creio que a prioridade de negócios é sua atual ocupação em Van.

Não falei nada.

— Mesmo que eu verdadeiramente me arrependa disso, ainda devo dizer. Dei minha palavra para Sir Julius, e o Império tem um dever a cumprir aqui — disse ela. — Poderia, por favor, devolver Van?

— Não há necessidade de se apressar para a conclusão — falei. — Quero dizer, essa é uma chance rara para o chefe do reino e a número dois do Império negociarem diretamente. Quero aproveitar essa oportunidade para discutir sobre as diversas coisas que gostaria e dividir as informações que tenho. Vamos deixar qualquer tópico que possa gerar um clima desagradável para depois.

Jeanne fez um rosto pensativo, mas eventualmente concordou.

— Bem, então, nesse caso, gostaria de chamar os burocratas do meu país que estão de pé do lado de fora deste castelo. Isso seria aceitável?

— Permitirei — falei. — Eles terão que passar por uma fiscalização corporal, no entanto. Tem alguém aí?

Quando chamei alguém na direção da entrada, Serina respondeu:

— Com sua licença. — E então entrou na sala.

Espera, por que Serina está aqui?!, pensei.

— Não pedi para que mantivesse Sir Julius entretido? — demandei uma resposta.

— Eu já finalizei o entretenimento — disse Serina, com uma expressão indiferente em seu rosto.

Acabou de anoitecer, mas Julius já caiu bêbado?, pensei, incrédulo. Serina… você realmente é uma mulher aterrorizante.

— Há alguma coisa errada, senhor? — perguntou ela.

— Ah, não… Traga os burocratas e as pessoas que vieram com Jeanne, por favor. Faça questão de, ao menos, fazer uma busca superficial por armas e coisas assim.

— Como desejar. — Serina partiu com uma reverência elegante.

Se havia uma pessoa que eu não queria como inimiga de jeito nenhum, era ela…

 


 

Tradução: Jeagles

 

Revisão: Sonny Nascimento (Gifara)

 


 

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