— Certo… para o próximo documento — falei.
Quer eu estivesse na capital real, Parnam, ou na capital principesca, Van, meu trabalho como rei era sempre o mesmo. Fiquei no escritório de assuntos governamentais, estudando os documentos que Hakuya preparou para mim e assinando-os. Ainda mais agora, com a ocupação de Van tendo começado tão recentemente, minha carga de trabalho aumentou.
Deixar que vários dias de trabalho se acumulassem para que eu pudesse produzir aquele programa musical não foi de muita ajuda. Mesmo enquanto trabalhava dia e noite, usando meus Poltergeists Vivos sem parar, o número de pilhas de papel à minha frente se recusava a diminuir. No final, acabei instalando uma cama no escritório de assuntos governamentais de Van, para poder voltar ao trabalho assim que acordasse.
Então, desta vez, como em todos os dias, me sentei à mesa no momento em que saí da cama e estava olhando para uma pilha de papéis enquanto o sol da manhã entrava no escritório.
— Não está na hora de você ter seu próprio quarto? — perguntou Liscia de sua posição ao meu lado, parecendo um pouco exasperada. Ela estava me ajudando. — Este castelo tem muitos quartos.
— Estou atolado no trabalho, do amanhecer ao anoitecer — falei. — Não existem motivos para ter um quarto, se só vou a ele para dormir. Fala sério… quando as coisas finalmente se acalmaram no reino, acabei criando mais trabalho para mim com a ocupação de Van. É tipo, que se dane a Lei de Padrões Trabalhistas.
— De que tipo de bobagem você está falando? — perguntou Liscia. — Vamos, aqui está o próximo documento.
— Sim… Espera, isso de novo?
Quando olhei para o documento que ela me passou, encolhi os ombros.
Dizia: “O povo de Van quer fazer um concerto musical ao ar livre, na praça. Está tudo bem em permitir isso?” Eu já tinha processado várias petições parecidas no mesmo dia.
Eram para concertos, peças teatrais, exposições artísticas, exposições de caligrafia e circos, assim como outras coisas. Parecia que, após ver aquela transmissão, o povo de Van havia despertado para a ideia de se expressar através das artes. Sim, isso era verdade…
— Uma renasceeeeeeeença — falei, estendendo a palavra.
— E aí…? Isso saiu do nada — disse Liscia.
— Nada…
Ela olhou para mim de um jeito meio engraçado.
Sim, se vou fazê-la rir dizendo uma palavra engraçada, provavelmente devo primeiro introduzi-la ao idioma local, pensei.
Embora a Renascença original tenha ocorrido como um renascimento do humanismo grego e romano com o declínio da influência da igreja cristã, este seria um renascimento cultural em que tiveram acesso às artes após serem libertadas do militarismo.
— Ainda assim… Sei que o outono é a estação da arte, mas esse despertar é repentino demais — comentei.
Sinceramente, eu preferia não ser inundado com um fluxo interminável de pedidos de eventos de artes e cultura. Afinal, esta cidade estava tecnicamente sob ocupação. Se os eventos atraíssem grandes multidões, era possível que conspiradores se reunissem ali ou que fossem alvos de terroristas. Eu gostaria que se colocassem no meu lugar, como o cara que tinha que minuciosamente verificar tudo para ter certeza do que estava acontecendo.
Quando ela me viu segurando a cabeça entre as mãos, Liscia deu um sorriso irônico.
— Sério, você não pode culpá-los. Significa apenas que sua transmissão teve muito impacto, certo? Parece que esse tipo de coisa foi muito reprimida até agora.
— Aposto que sim… — falei. — Duvido que um estado militarista permitiria alguma forma de expressão.
Queimando livros por criticar um pouco o regime governante, prendendo pessoas por entoar cânticos que clamavam pela paz, publicamente executando o chefe de uma trupe teatral por encenar uma peça que satirizava o governo…, pensei. Eles provavelmente teriam feito tudo isso sem nem pensar. Esta empolgação que estou vendo deve ser o resultado disso.
— Embora, graças a isso, minha carga de trabalho aumenta — falei taciturnamente.
— Sem resmungar — disse Liscia. — É melhor do que a oposição deles.
— Bem, sim, mas… Eu talvez crie uma agência para lidar com os eventos — falei, exalando inspiração. — Se eu colocasse Margarita no comando disso, poderia fazer com que ela cuidasse de tudo relacionado ao entretenimento.
— Por mim, tudo bem, mas… você precisa cuidar dos documentos.
— Oof…
Parecia que, por mais que eu lutasse, minha carga de trabalho não diminuiria.
Bem, eu sou o rei, então acho que não tem como evitar isso, hein.
Trabalhei a tarde toda e, no momento em que senti fome e disse a Liscia que devíamos fazer uma pausa para comer, Poncho Ishizuka Panacotta, o Ministro da Crise Alimentar, entrou na sala.
Ele se aproximou até ficar diante de mim, sua barriga redonda tremendo enquanto se posicionava, e depois fez uma saudação tensa.
— H-Hm, Vossa Majestade, eu esperava ter um momento de seu tempo, sim.
Ele estava claramente ansioso. Podia não parecer impressionante no momento, mas Poncho foi fundamental para cuidar da crise alimentar, e ele era um homem que escolhi a dedo para trabalhar ao meu lado, então era uma figura respeitada no país.
É por isso que eu gostaria que ele já tivesse se acostumado a ficar na minha frente… pensei.
— Algum problema? — perguntei.
— S-Sim! Há algo que eu queria te mostrar, senhor, sim — disse Poncho, tirando algo da sacola que carregava e colocando-o sobre a mesa do escritório.
— Queria nos mostrar… uma flor? — Liscia, que estava nos observando, falou confusa.
Poncho havia aparecido com uma única flor. Parecia um lírio. Entretanto, tinha uma combinação tóxica de pétalas rosas, amarelas e marrons.
Se fosse um cogumelo, seria um aviso claro para não comê-lo, pensei.
— O que é isso? — perguntei.
— S-Sim! Esta é uma flor chamada de “lírio sedutor”, sim.
— Ah, certo, percebi que é um lírio — falei. — Mas o que há de tão cativante nisso?
— O pólen da flor tem um poderoso efeito alucinógeno — explicou ele. — Induz qualquer pessoa que o inale a um estado semelhante ao sonambulismo. Ela cresce principalmente nas montanhas. Há muito tempo, houve um incidente em que uma divisão do exército a inalou enquanto marchava. Eles caíram de um penhasco, fugindo de inimigos que nem existiam, e como resultado acabaram eliminados.
— Assustador! — exclamei. É como uma droga não-controlada ou coisa assim? — Espera, não traga essas coisas aqui!
— E-Está bem — disse Poncho. — Já removi o pólen, sim.
— Sério…? Bem, contanto que você tenha certeza de que é seguro — falei.
— Sim — concordou ele. — Além disso, o pólen de uma ou duas não terá nenhum efeito. Se tentar se aproximar de um campo onde centenas delas estão crescendo, porém, nem mesmo cobrir a boca e o nariz com um pano… Sim.
Bem, claro, sem usar uma máscara de filtragem de ar, duvido que consiga bloquear todo o pólen, pensei. Nunca tive que lidar com isso pessoalmente, mas as pessoas com alergia a pólen pareciam ter dificuldades, mesmo com uma máscara.
— Então, queria me mostrar esta flor? — indaguei.
— Não, a flor é só um tipo de bônus, senhor. O que eu queria que você visse era isso. — Com essas palavras, Poncho puxou um pequeno objeto arredondado. Será que era… um vegetal? Era branco, redondo e irregular, como bulbos de cebolinha ou dentes de alho densamente agrupados em um tipo de pinha.
— O que é isso? — perguntei.
— E-Este é um caule de lírio sedutor, sim.
— O caule… — murmurei. — Ah, o caule do lírio, hein!
— Eek! O que foi isso, tão de repente…? — Minha repentina explosão surpreendeu Liscia.
Fiquei animado com o aparecimento repentino e inesperado de um ingrediente de luxo.
Hmm, então isso é uma raiz de lírio, pensei. Já vi uma peça como ingrediente em uma tigela de chawanmushi1É um tipo de pudim salgado, um prato típico japonês. antes, mas é a primeira vez que vejo um bulbo inteiro. Se bem me lembro, deve ter gosto parecido com o de batata.
— Pois bem, Poncho Ishizuka Paramédico… — comecei.
— É-É Panacotta, sim.
— Isso é de comer? — perguntei.
— Sim, claro que é. Esta raiz não tem efeito alucinógeno, sim.
— E quanto ao sabor? — perguntei.
— Se cozinhar no vapor, ficam macios, suculentos e deliciosos. Devo acrescentar que esses lírios sedutores crescem em todas as montanhas da Amidônia.
É bom ouvir isso, pensei. A raiz de lírio é rica em carboidratos. Pode ser usada como alimento básico, igual batatas. Se pudéssemos colhê-los, poderia resultar em um avanço na solução da crise alimentar do principado.
— Mas com o pólen, não pode chegar perto de onde crescem, certo? — perguntei.
— Sim — concordou ele. — E se não forem colhidos enquanto estão liberando pólen, a toxicidade se acumula em suas raízes. É por isso que não costumam ser comidos na Amidônia, sim.
— Bem, isso então não é bom — falei. — Mesmo se forem comestíveis, se não puder colhê-los, então… Espera, hein? Então como você conseguiu isto?
Quando perguntei isso, Poncho pegou um mapa e apontou para uma área no nordeste do Império Gran Caos.
— Há um povo nas montanhas do Império Gran Caos que colhe o lírio sedutor e o usa como alimento básico. Desenvolveram um método peculiar de colheita, sim.
— Que método é esse? — perguntei.
— Usam os shoujou para isso, sabe, sim.
— Os shoujou… São um tipo de orangotango, certo? — Me perguntei em voz alta, e Poncho balançou a cabeça.
— Entre as variedades de orangotango que vivem nas montanhas, uma espécie apresenta resistência aos efeitos do sedutor pólen do lírio. Parece que esses orangotangos costumam desenterrar os caules das raízes e os comem. O povo montanhês do Império treina os orangotangos para fazer a colheita por eles.
Entendo, bem parecido com os cormorões2É um pássaro, também conhecido como cormorão. usados na pesca, hein, pensei. Domá-los normalmente seria complicado, mas… temos um especialista na área em nosso país.
— Também tem esses orangotangos aqui na Amidônia? — perguntei.
— Sim — respondeu ele. — Parece que também vivem nas montanhas perto de Van. Tomoe já está negociando com eles por nós. Os shoujou são famosos por seu amor ao álcool, então suspeito que trabalharão felizes, desde que possamos dar um barril de vez em quando no lugar de dinheiro, sim.
— É bom ver que você trabalha rápido… — falei.
Não temos apenas a Reserva de Rinossauros, agora também estamos formando o Exército Símio de Van, hein, pensei. Nesse ritmo, eu poderia transformar Elfrieden em um verdadeiro reino animal. Ha ha ha…
— Ei, Liscia… — falei.
— O quê? — perguntou ela.
— Se acha que esta política é sem sentido, pode parar com isso, certo?
— Não espere que eu tome essa decisão…
Liscia se virou, recusando-se a ter qualquer coisa a ver com isso.
Uma semana (oito dias) depois, a comida distribuída em Van incluía um bolinho feito com a raiz do lírio sedutor (raiz de lírio, para abreviar).
— Estamos distribuindo bolinhos de raiz de lírio, sim — disse Poncho.
Poncho, o Ministro da Crise Alimentar em pessoa, estava no local de distribuição, pessoalmente distribuindo sopa de bolinho de raiz de lírio para o povo de Van. A crise alimentar afetou muito a Amidônia, então o povo de Van fez fila com potes em mãos para levar um pouco de sopa para casa. Além da sopa distribuída, também havia um pouco à disposição para degustação, e ele estava servindo isso para as pessoas que formavam fila para recebê-la.
— Isso realmente esquenta — disse uma mulher. — Isso é melhor do que imaginei.
— A sopa em si tem um sabor agradável — concordou outra. — Acho que chamam isso de missô, certo?
— Esses bolinhos, aposto que também ficam bons fritos, hein? — comentou uma terceira. — Adoraria tentar cozinhar eu mesmo.
Enquanto as moradoras de Van conversavam, Poncho as chamou.
— T-Temos bolinhos de raiz de lírio que podem levar para casa também. Gostaria muito que os levassem e deixassem suas famílias experimentar, sim.
Quando Poncho ergueu um saco cheio de bolinhos de raiz de lírio, um brilho passou pelos olhos dos moradores. Então, antes que ele percebesse, Poncho foi cercado por mulheres.
— Que coisa, que consideração — disse uma. — Isso é de grande ajuda, jovem.
— Você, você é um dos retentores pessoais daquele rei, certo? — perguntou outra. — Você já tem alguma pessoa especial?
— Ah. Não, nem mesmo pensei em casamento… — No momento em que Poncho disse isso, visivelmente perturbado, havia um brilho nos olhos das donas de casa.
— Ora, esplêndido! Minha filha é uma doce garota, sabe — disse uma mulher. — Será que você não gostaria de ficar com ela?
— Ei, isso não é justo! — protestou outra. — Se você for tomar uma esposa, deve ser a minha filha! Ela tem bons quadris para o parto, como eu, então posso prometer que ela vai te dar um bebê saudável!
— Se ela fosse morar com um sujeito corpulento como você, não precisaria me preocupar com a possibilidade de ela passar fome — acrescentou outra.
E, antes que ele percebesse, já estavam tentando arranjar uma esposa para Poncho…
Quando ouviram o barulho, algumas das jovens até mesmo se ofereceram para o cargo.
— Ele é um dos favoritos do rei, não é? — perguntou uma jovem. — Isso faz parecer alguém importante.
— É uma chance para se casar com um rico — concordou outra. — Sim, sim! Eu me inscrevo para isso.
A próxima coisa que Poncho percebeu foi que estava sendo cercado por mulheres jovens e velhas. Souma tinha acabado de mostrar a eles que não havia problema em se expressar, então as mulheres foram bem diretas com suas emoções. Poncho, que não estava acostumado com esse tipo de atenção, não sabia o que fazer e ficava nervoso, até que…
— O que você está fazendo, Sir Poncho?
Alguém o chamou com uma voz que não era alta, mas que soava bem…
Quando várias mulheres olharam para a fonte da voz, viram uma bela mulher em uma roupa de criada com uma concha na mão. Vendo a beleza estonteante da criada, as mulheres engoliram em seco.
Então, de todas as coisas, aquela criada caminhou até Poncho, envolvendo-se no braço grosso dele.
— Vim aqui a pedido de Sua Majestade para ajudar em seu trabalho, já que você é muito tímido, sabe? Que tal relaxar enquanto trabalho para você?
No momento após ela dizer isso, Serina lançou um olhar para a multidão de mulheres. Ela não estava olhando para as outras, mas todas se sentiram intimidadas por seu lindo rosto.
O que uma beldade como ela está fazendo ao lado de um cara barrigudo feito ele?!, pensaram.
Eles estavam até de braços dados. Será que estavam em algum relacionamento escandaloso?
Sem se importar com os sentimentos das mulheres, Serina lançou um olhar significativo para Poncho.
— Certifique-se de me compensar depois. Esta noite não ficarei satisfeita com apenas uma vez.
Quêê?! As senhoras se engasgaram após as palavras sugestivas de Serina.
A propósito, o que Serina não se contentaria em fazer apenas uma vez era provar os pratos experimentais de Poncho. Ela havia se encantado com os pratos que ele fazia com base na culinária simples do mundo de origem de Souma. Em outras palavras, estava dizendo que não ficaria satisfeita ao provar um único prato.
Poncho entendeu o que ela queria dizer e respondeu:
— S-Sim! Vou voltar ao trabalho, sim! — Depois voltou ao trabalho de distribuir comida.
Serina deu de ombros, indiferente, depois se virou e fez uma reverência elegante às mulheres antes de seguir Poncho.
As mulheres só puderam assistir enquanto os dois saíam, sentindo-se como se tivessem sido de alguma forma enganadas.
Bem, embora existissem alguns problemas, os bolinhos de raiz de lírio eram deliciosos, tanto fritos quanto cozidos, e isso ajudava muito a acalmar e tranquilizar o coração do povo ocupado.
A cultura de comer raízes de lírio se espalhou por Van, e Poncho Ishizuka Panacotta, que distribuiu os bolinhos pessoalmente, tornou-se respeitado de maneira quase que divina pelo povo de Van, que passou a chamá-lo de “Lorde Ishizuka”.
Algum dia, talvez, ele mandasse construir santuários para sua adoração, como Billiken3É uma figura mística de boa sorte, que representa “as coisas como devem ser”..
Tradução: Taipan
Revisão: Sonny(Gifara)
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