A Calmaria Divina

Calmaria Divina – Vol. 01 – Cap. 13 – A Clareira dos Espíritos

 

Thorian, Clareira dos Espíritos.

Um chicote de vinhas entrelaçadas atingiu Shimitsu logo que ele saltou, ao mesmo tempo que uma cúpula de raízes se formou ao redor da criatura abaixo de nós o carregando para baixo do solo e desaparecendo, sem deixar vestígios na terra logo antes da grama crescer mais uma vez quase instantaneamente após o caminho se fechar.

Sangue jorrou das feridas agora reabertas do Kitsune e me apressei para segurá-lo antes que atingisse o chão.

Árvores se curvaram em nossa direção enquanto Shimitsu se levantava e me apressei a nos defender.

— Cadê o inimigo? — Perguntou. — Não vejo ninguém. 

— Me diz que não dá pra floresta inteira ser um monstro.

Conversávamos enquanto evitávamos saraivadas de raízes e galhos que cortavam a névoa e vinham em nossa direção, até que o tronco de uma árvore próxima começou a crescer de forma absurda, dobrando de altura e largura, começando a tombar em nossa direção.

Shimitsu começou a se afastar e eu fiz o mesmo, na direção contrária. Meu pé afundou no chão e um nó de raízes se prendeu em meu tornozelo, começando a subir pela minha perna.

Shimitsu já estava fora da área de impacto da árvore, então cravei meu tridente na planta, partindo-a o suficiente para romper o resto com a força de minha perna, me esquivando por pouco do tronco massivo.

Meu companheiro começou a se aproximar, evitando os ataques da floresta e seu braço energético começando a arder em chamas, junto de sua espada.

Ele balançou sua arma, as chamas lambendo as vinhas que se aproximavam. Quando chegou até mim, cravou a lâmina no chão, o fogo se espalhando e formando um círculo à nossa volta.

— Aparece, filho da puta! — berrou com um rosnado.

Uma outra voz veio da clareira onde estávamos, uma voz assustada.

— Thorian! Shimitsu!

Sanir entrou correndo no campo de batalha seguido pela Quimera e mais árvorestornaram-se hostis.

— Cuidado, Sanir! — gritei.

— O que tá acontecendo?

— Deve ser um dos monstros, mas não sabemos onde ele está.

— Monstros? Eu só vi uma… woah!

O Halfling se assustou quando saiu do chão, suspenso no ar por uma árvore que o segurava pelas pernas. Quimi tentando sem sucesso ajudá-lo.

Comecei a me mover em sua direção, porém Shimitsu era mais rápido, me ultrapassando e libertando o garoto.

Então uma voz veio, aparentemente de cada uma das árvores ao nosso redor. Uma voz firme.

— Saiam agora, antes que minha paciência acabe.

— Nós viemos matar você, ou seu mestre. — Rosnou o Kitsune.

— Então essa é a escolha de vocês.

Quimi rosnava enquanto uma figura começava a se materializar a partir das raízes no chão, uma pessoa encapuzada. 

Mais e mais vinhas saíam de baixo de sua túnica, se aproximando ainda mais rápidas e afiadas que as outras.

— Espe—.

— Atrás de mim, Sanir. — Shimitsu o interrompeu, as chamas em seu braço estalando ainda mais alto, enchendo a batalha com ruídos, juntamente das plantas que se movem ao nosso redor.

Avançou na direção do homem o segui, o ajudando a aparar os ataques que vinham.

Meu companheiro atirou-se no inimigo, que criou um escudo de madeira ao redor do braço para se proteger. 

Investi contra ele, atingindo com meu ombro, tirando seu equilíbrio, dando a Shimitsu uma abertura para atacar.

Ele cortou seu manto na altura do peito, ateando fogo ao nosso inimigo, mas por baixo haviauma armadura de madeira maciça que bloqueava os danos. 

Uma saraivada de espinhos pareceu explodir por baixo de sua túnica, perfurando a mim e ao meu companheiro.

Em seguida, duas árvores surgiram aos seus pés, avançando e nos empurrandoalguns metros para trás.

O homem se impulsionou com outro tronco e estava prestes a cair sobre nós com um martelo de madeira formado ao redor das duas mãos, juntas acima da cabeça. 

Um som agudo chegou aos nossos ouvidos vindo de onde Sanir estava e o inimigo pareceu se distrair, atrasando seu ataque apenas o suficiente para nos recompor.

Recebi seu golpe com meu escudo, o direcionando para o lado. Shimitsu se levantou e ergueu sua lâmina, com visão limpa do pescoço do inimigo que se levantava cambaleando um pouco, o martelo se desfazendo.

— Shimitsu! — Sanir gritou.

— E-ey! — Uma outra voz gritou, com menos força.

O inimigo olhou rapidamente para a direção da voz e segui seu olhar. Outra figura, um pouco maior do que a que havia desaparecido antes, mas menor que aquele que nos enfrentava, estava ao lado do Halfling, olhando para nós.

Se assemelhava a uma criança élfica, mas parte de seu rosto era inchado e flácido, assim como outras partes de seu corpo. Um aperto surgiu em meu peito e me movi instintivamente, segurando o braço de Shimitsu que estava prestes a decapitar o homem.

— Que porra você tá fazendo? — O Kitsune se virou para mim.

Sanir chegou correndo e gritando.

— Vocês não me ouvem, cacete.

Os ignorei e me voltei para o homem que parecia controlar a floresta, enquanto a outra figura também desaparecia entre as folhas, como se fosse engolida por elas.

— Quem são vocês?

— Pessoas inocentes que moram nessa floresta. — Respondeu com um olhar frio.

Notei então que metade de seu rosto parecia ser feito de madeira.

— Por que está falando com ele Thorian, nossa missão é eliminar esses monstros!

Shimitsu interveio.

— Monstros? Monstros!? Vocês invadem nossa casa, matam nossos irmãos, e nós somos os monstros!? Deviam ter me matado! — Ele dizia, enquanto as árvores ao nosso redor pareciam vibrar em fúria.

— Deixa que eu faço isso então. — O Kitsune voltou a se aproximar com a espada em mãos, mas me coloquei em sua frente.

— Shimitsu, não. Eles estavam assustados, o único que se defendeu foi ele. — olhei para o homem ajoelhado. — Você é quem deveria ter percebido isso.

— É. Eu senti o medo deles. Quem não sente medo em um combate?

— Monstros não sentem. — Respondeu Sanir.

— Eu sou Thorian, e você?— Perguntei ao encapuzado.

— Seley.

— Pode me dizer o que está acontecendo?

— Por que eu deveria? — Ele mantinha um tom cauteloso, mas a floresta já

começava a se acalmar.

— Talvez porque sejamos aliados.

— Pelo menos não somos inimigos. — Completou Sanir.

Shimitsu se sentou no chão suspirando e o Halfling correu para ajudá-lo assim que percebeu suas feridas reabertas.

— Aqui, come. — Ofereceu a ele outra fruta que estava em sua mochila.

— E então? — Continuei.

— Certo. Eu sou o guardião dessa parte da floresta, o responsável pelas crianças.

— Crianças? — E então lembrei das figuras que desapareceram entre as folhas quando Seley apareceu.

— Elas são o motivo de sermos caçados, mas estão longe de serem monstros. São resultado de uma geração antiga, frutos descartados de um experimento mal-sucedido.

— Sou um paladino do Sol, jurei que carregaria a luz até os recantos mais sombrios, vou cumprir essa promessa em nome de Solarith. Para onde levou as crianças?

Ele nos olhou com desconfiança nítida, principalmente para Shimitsu.

— Você vai, os outros ficam. Deixe suas armas com eles. — disse, se voltando para mim. Assenti com a cabeça. Shimitsu me puxou para o lado e sussurrou.

— Você tem certeza disso? Eu não confio nele, mesmo que esteja falando a

verdade.

— Eu tenho um pressentimento, vou ficar bem.

— Toma cuidado, vou atrás de você se não voltar até o escurecer.

Me virei novamente para Seley.

— Estou pronto.

Vinhas começaram a surgir ao nosso redor, não senti hostilidade vindo dele enquanto uma cúpula se fechava ao nosso redor. Pude ouvir a terra abrindo caminho para nossa passagem, mesmo que mal pudesse sentir o movimento. Após alguns minutos de silêncio, voltou a falar.

— Um passo errado e você está morto.

A cúpula se abriu no meio de uma pequena vila. Haviam várias cabanas feitas de madeira e várias crianças se aproximaram quando nos viram. Elas pareciam felizes, apesar das frequentes desproporções em seus corpos.

Algumas mancavam por uma diferença no tamanho ou deformação dos membros, outras pareciam simplesmente muito fracas.

Haviam aquelas que guiavam umas às outras, empurrando outra que descansava em uma cadeira com rodas. 

Nessa vila a névoa que entorpecia meus olhos desapareceu, deixando minha vista limpa.

Nenhuma das crianças ali parecia ter mais que 11 anos de idade.

— Seley!

— Ley!

— E-ey!

Vi também aquelas duas crianças que havíamos encontrado mais cedo, estas mantinham-se mais afastadas.

Seley se apressou e correu em direção a uma garota de não mais que 6 anos cujos olhos pareciam ter sido cortados, ela apenas acenava para onde acreditava que estávamos enquanto segurava a mão de outra que a acariciava.

Ele passou a mão em seu rosto, ela pareceu reconhecer o toque.

— Não são apenas as crianças vindas do desastre que nosso Pai abriga, mas também aquelas cuja a família não pôde cuidar, como a pequena Li aqui. — a pegou no colo. — A resgatamos de uma família abusiva, o pai arrancou seus olhos,  língua e perfurou seus ouvidos. Ela não pode ver ou ouvir, todo o mundo dela está no que sente.

— Seley! Quem é esse? Está ferido?

Ouvi uma voz se aproximando. Era um humano calvo, mas com os cabelos longos e grisalhos nas laterais, com barba bem aparada. Já parecia ter atingido seus 60 anos.

— Olá, Pai. — As crianças repetiram o gesto. — Este é Thorian, o paladino. Encontramos ele e seus companheiros na floresta, estão dispostos a ajudar.

 

Sanir, alguns minutos antes.

Me virei no chão, procurando meu travesseiro. Acordei quando percebi que não havia nenhum.

As folhas das árvores balançavam, mas não havia vento. A névoa da maldição continuava lá. Olhei em volta e percebi que estava sozinho.

— Thorian? Shimitsu? Tem alguém aí?

As coisas deles ainda estão ali, então não devem ter ido embora. Devem ter ido preparar o café da manhã.

Me sentei para esperar até que voltassem, imaginando o que trariam de bom.

Quimi começou a rosnar e ouvi passos arrastados atrás de mim.

— Bom dia. Uh… oi?

Uma criança estava sentada de costas para mim a alguns metros de distância. 

De onde ela veio?

Ela pareceu surpresa quando se virou para mim.

— O-i.

Falava com dificuldade e tinha parte do rosto deformado, como se tivesse sido atacada por um enxame de vespas.

Me aproximei devagar, ela fez o mesmo. Mais se arrastava do que andava.

— Meu nome é Sanir Galho-Negro, e o seu? O que aconteceu com você? Tem alguma alergia?

— Bo. O -e é a-e-gia?

— Você fala estranho, alergia é…

As árvores começaram a se mover mais violentamente, estouros chegavam abafados a alguns metros. Bo se assustou e cochichou alguma coisa antes de começar a ir em direção ao barulho.

— E-ey…

— O que foi, Bo?

Ele não me respondeu, apenas seguiu arrastando os pés, então fui em sua frente.

Ele me alcança. 

Quando cheguei próximo o suficiente para enxergar a origem do barulho, vi línguas de fogo se erguendo contra as árvores que atacavam meus amigos.

— Thorian! Shimitsu! 

 

Jack, ???.

A grama do jardim estava intacta exceto pelo local onde eu estava deitado até o instante anterior. Ao meu redor havia um grande terreno coberto por arbustos e flores bem cuidadas que nos recebiam, rodeando a trilha de pedra que levava à entrada do grande palácio à nossa frente.

Durante os poucos minutos que observei a paisagem não vi nenhum animal, nem um único pássaro. 

Não havia som algum além do vindo de um córrego que deveria estar por perto. Arthur estava deitado no início do caminho até o palácio, ainda desacordado. 

Seu colar parecia não fazer efeito nesse lugar, pois sua pele estava novamente dividida, as asas retraídas nas costas. A presença dualística de volta.

Não havia ninguém além de nós. Ninguém que pudesse atrapalhar.

Saquei minha espada e fui até onde o jovem estava. Se é que ele é realmente jovem. Se realmente for filho de uma deusa, deve ter pelo menos um milênio. 

Ele ainda está respirando.

Me concentrei no sentimento que fazia minha garganta se fechar. Aquela aura demoníaca que só trouxe dor e ódio a esse mundo.

Essa será minha melhor chance de acabar com isso de uma vez, antes que ele perca o controle como os outros.

 


 

Autor: HaltTW

Revisão: Bravo

 


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Halt

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