A Calmaria Divina

Calmaria Divina – Vol. 02 – Cap. 03 – O Próximo Passo

 

Thorian.

Todos estavam quietos após a refeição. Sanir, que finalmente havia terminado de comer, se debruçava na mesa, varrendo o ambiente lentamente com os olhos. Jack continuava imóvel, eu já acreditava que ele realmente estava cochilando. Sanir passava uma faca entre os dedos, até que deixou uma rápida risada escapar, estava fundo demais em meus pensamentos para perguntar o motivo para tal.

Com a menção do incidente de Vale Cinza, juntamente com a perspectiva de encontrar seu culpado em breve, meus pensamentos voltaram a me atormentar. Sabia que não podíamos fazer nada. Provavelmente estarmos vivos era somente questão de sorte. Quando estava prestes a me conformar, pensei nas milhares de vidas perdidas, entre elas, Galileu.

Não havíamos passado muito tempo com o Elfo, mas ele ainda era parte do grupo.

Para meu alívio, a porta da taverna se abriu e vi Arthur se aproximando. Estava levemente ofegante, como se tivesse vindo com pressa e logo Shimitsu voltou a deixar escapar sua risada.

Arthur passou seu olhar de Shimitsu a Sanir e então relaxou, suspirando.

— Ah… vamos para a pousada, já está ficando tarde. Já deixei Quimi em um estábulo aqui perto.

Sanir se aproximou com cuidado de Jack, o único que ainda não havia se levantado. Juntou os dedos, preparando um peteleco apontado para onde a orelha do paladino deveria estar embaixo do capacete e uma pequena quantidade de energia se tornou visível na ponta de seus dedos. O rosto do homem se virou subitamente, olhando para o Halfling, que deu um salto para trás com o susto.

— Isso não é jeito de acordar alguém maior que você. — Ele disse de forma que eu fiquei na dúvida sobre se seria uma brincadeira ou uma ameaça.

— Preferia um beijo?

Ele não respondeu.

 

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Fomos todos até as escadas que levavam ao andar de cima da taverna, onde encontramos um balcão com uma Mulher-Lagarto de escamas verde-azuladas e aparência jovem. Vestia roupas simples que destacavam ainda mais sua cor. Ela olhou para nós com um sorriso cansado.

— Sejam bem-vindos a Alaéria. Posso oferecer dois quartos grandes a vocês pelo preço de duas moedas de cobre por noite cada.

— Muito obrigado. — Agradeci, enquanto oferecia a ela as quatro moedas. — Que o Sol a ilumine.

Acenou com a cabeça, aparentemente sem saber o que responder, enquanto nos entregava duas chaves numeradas.

Seguimos em frente e encontramos nossos quartos, um ao lado do outro.

Sanir se colocou à frente das portas, de braços cruzados.

— Antes de dormir, precisamos conversar. — Sua expressão, diferente do usual, estava séria. — Precisamos de um plano.

— Você tem razão. — Respondi.

Sanir abriu espaço quando dei um passo em direção a uma das portas. Abri-a e esperei que os outros entrassem.

O quarto era espaçoso, haviam duas camas com uma grande janela entre elas, além de um colchão de palha extra apoiado na parede e uma mesa baixa e redonda no centro do quarto.

— Então, alguém tem alguma ideia? — O Halfling perguntou.

Depois de alguns segundos de silêncio, Jack começou a falar, possivelmente ao perceber que ninguém havia pensado em nada.

— O mais lógico seria encontrá-lo, identificar seu estado e então planejar um ataque.

— Você tá maluco!? A gente vai morrer se atacar. — Arthur exclamou.

— Essa não era a droga do objetivo? Você mesmo disse que não tínhamos escolha além de encontrá-lo. E por que outro motivo viríamos atrás dele se não para matá-lo?

— Uma batalha não se vence só com espadas. — Shimitsu entrou na conversa. — Mesmo que a maioria delas sejam assim. — completou, em voz baixa.

— Então vocês pretendem ficar apenas observando ele?

— Mesmo se ficássemos observando, nos perceberia. — Arthur e Shimitsu disseram, quase ao mesmo tempo.

— Ele pode acabar nos percebendo, mas se é tão forte assim, nós seríamos insignificantes, então pode nem se dar ao trabalho de nos atacar. A arrogância é a maior fraqueza desse tipo de inimigo.

Trégua, que agora já tinha mais liberdade sobre o próprio corpo. Levantou uma mão.

— Desculpe — ela começou, com a voz mais nítida que antes — Quem estamos procurando?

— Um pouco mais de uma semana atrás, um olho roxo e triangular surgiu no céu acima de uma cidade, Vale Cinza. No momento seguinte nós acordamos e a cidade inteira havia desaparecido. — Esclareci.

Ela pensou por alguns segundos antes de responder. Agora todos prestavam atenção nela.

— Certa vez, uma velha maga que encontrei em uma de minhas viagens me contou sobre uma pessoa com tal capacidade de destruição. Uma pessoa escolhida a dedo pelos deuses para carregar esse poder: o Apóstolo da Destruição.

— Está dizendo que os deuses escolheram alguém que não faz nada de bom? — Jack, que normalmente não deixa suas emoções transparecerem tão facilmente, parecia incrédulo.

— Você deveria saber que não existem somente deuses bons. — Arthur respondeu.

— Eu não sou um paladino por estudar religião.

— Mesmo que tentemos nos aproximar dos deuses, não somos capazes de entender seus reais interesses. — Entrei na conversa, relutante.

— Devem ser ótimos interesses para permitir que alguém destruísse e assassinasse uma cidade inteira.

— Pense pelo lado bom, pelo menos sabemos que não é algum tipo de entidade. Se é uma pessoa, é matável. — Sanir disse, com uma confiança infantil.

— Pode ser mortal — Shimitsu deu ênfase à palavra —, mas ainda é poderoso.

— Pra caramba. — Arthur completou.

— Se ele destruiu uma cidade, pode destruir outra. Ainda acredito que devemos colocar um fim nele. — Jack voltou à ideia.

Me virei para Trégua, que era quem parecia saber mais sobre o inimigo.

— Há quanto tempo você conversou com essa maga?

Ela pensou um pouco antes de responder.

— Cerca de dois anos atrás.

— Então ele está vagando com um poder desses há pelo menos dois anos e nenhum de nós ouviu falar disso antes. Talvez não possa usar essa habilidade com frequência. Se for realmente uma dádiva divina, não é algo que qualquer um utilizaria sem danos colaterais.

— Isso pode significar de duas coisas uma: ou essa é nossa oportunidade de agir enquanto ele se recupera ou ele é poderoso demais para nós lidarmos. — O Kitsune refletiu.

— Por agora, vamos encontrá-lo, então podemos decidir o que fazer em seguida. — disse, o cansaço em minha voz era mais nítido do que gostaria.

— Meu pai, o chefe, pode nos ajudar com isso. — Arthur declarou.

— Nós temos duas semanas, não precisamos agir agora. Podemos nos fortalecer enquanto a hora não chega. — Shimitsu declarou. — Nós estamos no Reino dos Caçadores, não estamos?

— Você tem razão. E agora que você comentou, Sanir. — Arthur chamou — Como assim eles sabem que existe uma chance do meu pai biológico estar na capital? Eu ainda não entendi o que isso quer dizer.

Sanir buscou a carta novamente em seu bolso.

— É só uma suposição. Ele começou a se mover logo após o anúncio do… anúncio.

— Isso eu entendi, mas nem eu sei quem ele é. Como o Thane pode saber?

— Às vezes é bom saber sobre coisas que poucos sabem. Principalmente quando se faz parte de uma organização que é o braço direito do Rei. Aqueles que lutam contra algo sempre devem estar atentos a novos inimigos.

— Entendi… — Arthur respondeu, ainda pensativo.

Eu também me esforçava para entender. Sanir, que ainda era uma criança, ter tantas informações era estranho. Jack também pareceu pensar o mesmo, se inclinando para frente na cama onde estava sentado, mas Shimitsu foi mais rápido.

— Mas pera aí, Sanir. — começou, com um suspiro, continuando assim que o Halfling olhou para ele — Deve estar na hora de você esclarecer algumas coisas.

— É. — Arthur concordou, se movendo para pegar a carta das mãos do garoto.

O pergaminho balançou quando seus dedos rasparam nele, ao mesmo tempo que Sanir o abaixou por reflexo, tirando-o do alcance do outro. Olhou nos olhos de Arthur e eu tive medo de que um conflito se iniciasse aqui, pensamento que se desfez quando Sanir ofereceu o pergaminho para Arthur. Não pude evitar espiar a carta.

“Uma reunião, seguida por um anúncio público, ocorrerá na capital de Vantrol em duas semanas. Aquele que estava sob vigia começou a se mover.”

— Isso não menciona que ele é meu pai. Como você pode saber algo assim?

— Com isso aqui. — Ele retirou outro bilhete menor do bolso. — Esse diz que um demônio tem sido vigiado por homens de Thane para determinar se é ou não uma ameaça. E como você é o único outro demônio que eu conheço, e você não conhece seu pai, assumi que esse é ele.

Shimitsu, que estava sentado em outra cama, ao lado de Trégua, levantou-se, se aproximando de Sanir.

— Você não me respondeu muito bem da última vez que perguntei. Quão forte você é?

— Eu… não sou nem um pouco forte sozinho. Eu posso te deixar mais forte por um tempo, ou então manter você de pé um pouco mais. É como eu disse, minha força depende de quem luta comigo.

O Kitsune acenou com a cabeça. Não tive certeza se ele estava satisfeito com a resposta, mas pareceu abandonar as outras perguntas, assim como Arthur e voltou a se sentar.

— Agora é melhor descansarmos. Temos muito trabalho a fazer. — disse, me levantando e pegando a outra chave com Sanir.

Jack trocou olhares comigo e Shimitsu, acenando para que ele e Trégua me seguissem.

 

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Arthur.

— Tami…

Sussurrei assim que acordei, ofegante e suado. Ainda não havia amanhecido completamente, então os outros ainda dormiam.

Tive o mesmo sonho daquela vez em que chegamos ao palácio com a pedra. Pensei. Era tão nítido que eu poderia até mesmo tentar encontrar aquela casa.

Pensando por alguns instantes, a ideia não pareceu ruim. Talvez eu pudesse tentar descobrir algo sobre a mulher que levou minha mãe.

Da primeira vez que tive o sonho não pensei muito sobre ele, já que poderia ser nada mais que um sonho, mas agora parecia ainda mais vívido e, se for real, nós não estaríamos tão longe daquela casa e ainda temos tempo o bastante para uma olhada.

Tentei voltar a dormir, mas esses pensamentos haviam me despertado. Esperei até que o Sol terminasse de nascer e saí do quarto. Levei comigo minhas espadas e uma pedra de amolar.

Saí do quarto com cuidado para não despertar os outros, desci o lance de escadas que levava até a taverna e encontrei um par de Avianos que arrumava as mesas, preparando-as para abrir o restaurante.

Acenei para eles enquanto passava. Dei uma olhada rápida na direção do balcão, que estava vazio, então saí pela porta entreaberta.

Me sentei ao pé de uma árvore próxima à taverna e busquei meu equipamento.

Enquanto o chiado constante da pedra de amolar contra o metal se perdia por entre as árvores, refleti sobre o sonho, que continuava nítido como uma memória, mesmo após quase uma hora acordado.

Sobre como meu chifre emitiu aquela luz dourada. Sobre como minha mãe se apressou em me tirar dali. Como ela voltou, sabendo o que aconteceria a seguir. Como aquela mulher se desintegrou enquanto a realidade se distorcia.

Essa pode ser a minha chance de encontrá-la.

Terminei com minha espada comum, então comecei a desembainhar a lâmina de ferro-frio, pensando em como faria sua manutenção sem me ferir com sua lâmina gélida, capaz de congelar com o simples toque.

Decidi que pensaria nisso mais tarde, já que ouvi o som de passos na grama, se aproximando. Olhando na direção do som, vi Ikaros, um aviano de penas claras e alguns detalhes marrons, também um dos poucos Avianos que nasceram sem asas. Filho de meu pai adotivo Gazoh, o que o tornava meu irmão. Ele provavelmente estaria fazendo patrulha na vila antes de iniciar suas reais atividades.

Me levantei e fui em sua direção, o cumprimentando.

— Bom dia, Ikaros.

— Olá, Art. É bom ver que está confortável. Precisa de alguma coisa?

Eu não utilizava meu disfarce, então minha pele e cabelo estavam divididos, assim como minhas asas à mostra.

— É bom estar em casa. Além disso é bom te ver, encontrou alguma coisa sobre o que te pedi ontem?

 

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Shimitsu Morioka.

Abri lentamente os olhos e vi Thorian terminando de se arrumar para partir. Ele percebeu meu movimento e se virou para mim

— Te acordei?

— Fica tranquilo. — Respondi.

Trégua também começou a se levantar. Ela havia dormido na cama, enquanto eu estava no colchão, o que não havia passado de uma questão de respeito, já que não sei se ela poderia sentir conforto.

— Bom dia, mestra. — Disse, enquanto me aproximava. — Como está? Acha que conseguiria enviar uma carta para a vila?

— Preocupado com eles?

— Eu só acho que podemos acabar ficando longe de casa por um tempo, então seria bom escrever alguma coisa para eles.

Thorian, ouvindo a conversa, pareceu refletir sobre algo por uns instantes, parando o que estava fazendo.

— Aconteceu alguma coisa? — Perguntei.

— Não, nada de mais. — respondeu pendurando seu capacete em um gancho na cintura. — Vou buscar alguma coisa para comer.

Peguei minhas katanas e me virei para Trégua, oferecendo Fukushu a ela.

Acenou negativamente com a cabeça.

— Com esse corpo, não acho que eu possa empunhar uma katana tão grande. Me empreste uma das suas, Fukushu já responde a você.

Dei um pequeno sorriso, que não foi retribuído, já que os entalhes que formavam sua boca não se moviam, mas senti que por dentro ela também sorria.

Entreguei a ela uma de minhas espadas antigas, então saímos do quarto.

Na taverna, encontramos os outros, acompanhados por um homem-águia sem asas. Sanir estava deitado com a testa na mesa, como se mal tivesse acordado. Provavelmente Jack o trouxe contra sua vontade.

— Bom dia. — Disse, me sentando à mesa.

O cheiro de chás e pães dominava o lugar. Uma mulher-lagarto chegou carregando uma bandeja com três tigelas de algum tipo de mingau, acompanhado por um único pão que estava tão macio que deveria ter saído do forno neste exato momento e um copo de um chá escuro. Então nos ofereceu a refeição, sendo que éramos os últimos a chegar.

— Agora que todos chegaram, tenho algumas coisas a dizer. — Arthur começou. Já havia terminado de comer.

— Sem más notícias antes do café, por favor. — Respondi.

— Na verdade não é nada ruim, espero. Esse aqui é Ikaros, meu irmão.

Sanir levantou a cabeça rapidamente ao ouvir a palavra “irmão”.

— Eu sabia! Vocês são iguaizinhos. Ah! Mingau.

O comentário do Halfling, que agora comia vorazmente, foi simplesmente ignorado.

— Ele vai enviar um grupo em busca do… alvo. Enquanto isso, tem um lugar que eu preciso ir. Vocês podem me acompanhar, se quiserem, não sei o que vou encontrar lá.

— E onde seria isso? — Thorian perguntou.

— A casa onde vivi com minha mãe até ela me deixar com Gazoh.

— Pretendo acompanhar o grupo de busca. — Jack disse. Ele também já havia terminado de comer, então seu capacete estava completamente fechado, como de costume.

— Nós também podemos ir. Assim poderíamos chamar reforços caso algo aconteça com qualquer um de nós. Shimitsu e Arthur podem se comunicar, não podem? Assim ficam três para cada lado. — Trégua sugeriu.

 


 

Autor: Halt

Revisão: Bravo

 


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