A Calmaria Divina

Calmaria Divina – Vol. 01 – Cap. 16 – Su’pe…sa

 

Shimitsu, Clareira dos Espíritos, manhã.

 

Já se passaram dois dias desde que chegamos na vila e ainda não tivemos nenhum sinal de Arthur ou outros invasores, o que estava me deixando entediado.

Saí da pequena cabana de madeira para encontrar Sanir montado em Quimi no centro de uma roda de crianças.

— Aí eu tava tocando na taverna quando um cara barbado entrou. Ele era baixinho igual eu e tinha umas asas rosas nas pontas de cima e verde água no resto, iguais às de uma borboleta. Ele entrou gritando “MAMÃE? ALGUÉM VIU A MINHA MÃE?”. Aí um outro gritou “COMO EU VOU SABER QUEM É A SUA MÃE?”. E outro gritou do outro lado “MAMÃE? VOCÊ TAMBÉM ESTÁ PROCURANDO A SUA MÃE?. Aí ele respondeu “ESTOU, VOCÊ TAMBÉM ESTÁ?”. Aí o taverneiro também gritou “PAREM DE GRITAR, AQUI NÃO É A CASA DA MÃE DE VOCÊS”. “AH…”, os dois gritaram, suspirando. “VAMOS PROCURAR ELAS JUNTOS!” e os dois saíram batendo de porta em porta em cada loja da rua, “MAMÃE? VOCÊ VIU A MINHA MÃE?”, gritava aquele que decidi chamar de Meio-Fada, “MAS A SUA MÃE OU A MINHA?!”, gritava o outro cara que o seguiu.

Nenhum deles pareceu me notar, então decidi que a floresta seria um bom lugar para matar o tempo.

Me perguntei como seria a visão das pessoas nessa floresta, dizem que uma densa névoa não deixa aqueles que nasceram fora daqui enxergarem, mas parece que na vila essa condição desaparece, já que os outros conseguem ver normalmente por lá.

Quando já havia me afastado o bastante da vila, retirei Fukushu de sua bainha e observei como a pouca luz que atravessava as densas copas das árvores refletia em sua lâmina púrpura.

Preciso me acostumar com seu peso e tamanho, ou meus ataques continuarão lentos.

Assumi a postura do fogo enquanto meu braço conjurado queimava em energia, ao mesmo passo em que o branco sumia de minhas caudas, substituído pelas cores cheias de azul e vermelho.

Com a mão esquerda às costas, brandi a Katana verticalmente. Fechei meus olhos, me concentrando única e exclusivamente no equilíbrio perfeito da arma. Repeti o processo até que meu ombro começasse a doer, assim como meu braço começou a falhar.

Ainda não posso manter ele por tanto tempo enquanto uso Fukushu. Também não sou capaz de continuar em minha postura por tanto tempo quanto Trégua.

Embainhei Fukushu e dissipei meu braço direito. Busquei minha lâmina sem nome com minha mão esquerda e passei a brandi-la até que meu braço inteiro estivesse fatigado.

Abri meus olhos enquanto me preparava para repetir o processo, mas com um golpe diagonal, quando vi um par de olhos me observando de longe.

Me aproximei calmamente da mesma criança que tentei assassinar quando chegamos. Por um instante pareceu que ela iria fugir, mas desistiu. Talvez soubesse que com as pernas que tem, não iria muito longe.

— Qual seu nome? — Perguntei.

— Geo’ge — Respondeu com dificuldade, balançando a cabeça desproporcionalmente grande, quando comparada com o corpo fino.

— George? — Repeti, então acenou com a cabeça.

— E… você?

— Shimitsu. Quantos anos você tem?

Ele pareceu confuso, ficando em silêncio.

— Esquece, e sabe, foi mal te assustar outro dia.

Tentou dar um sorriso, o que deixou seu rosto um pouco estranho, então apontou para algo atrás de mim. Quando me virei, não soube dizer para onde ele estaria olhando.

— E’pa…da

Ah. Suspirei, quando entendi. Desamarrei a bainha de Fukushu de minhas costas e a segurei. O garoto se sentou de pernas cruzadas no chão. Parece que ele quer ver.

Me ajoelhei, sentando em meus próprios calcanhares e retirei a lâmina.

— Quem…? — Ele perguntou.

— Quem me deu? Na verdade era de minha antiga mestra. Ela morreu há pouco tempo.

— Como… ela e’a?

Depois de alguns segundos refletindo, respondi.

— Era como eu, só que melhor.

Ele abriu a boca para dizer algo mais, mas parou.

— Ley! — Exclamou e levantou-se, cambaleando, ao ver o homem que se aproximava. Vestia seu capuz como sempre, apenas o retirava durante as refeições.

— É você, Amadeirado.

— É hora do café, vamos.

— Vá com ele, George. Vou continuar treinando. Se tiver sobrado algo pode deixar que eu como quando voltar.

Seley balançou a cabeça, oferecendo a mão ao garoto. Observei enquanto os dois desapareciam entre as árvores e então retomei meus exercícios.

 

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Thorian, um pouco após o meio dia.

 

O Sol quente banhava meu rosto enquanto descansava encostado em uma das poucas árvores próximas às casas.

Reparei que a cantoria havia parado, então abri meus olhos buscando pela roda de crianças que antes estava sentada alguns metros à frente. Risadas e vozes vinham da grande mesa no centro da clareira.

Devo ter cochilado. Pensei.

Ao me aproximar, senti o cheiro da refeição que já estava no fim.

— Aí está você, Thorian. Já estava me perguntando se deveria procurar por você. — Disse Falco enquanto recolhia os pratos das crianças que já se dispersavam com a companhia de Sanir.

— Onde está Shimitsu?

— Seley disse que ele está treinando nos limites da clareira. Você não vai ter problemas para chegar lá. — Disse enquanto servia duas tigelas de uma mistura semelhante a dos outros dias, mas que provavelmente estaria temperada levemente diferente. — Vocês devem estar com fome, aqui, leve.

Agradeci o homem, que mantinha um sorriso generoso no rosto enquanto dispensava meu gesto.

Peguei as duas tigelas, agora embaladas na toalha que antes cobria a grande travessa no centro da mesa, comecei a andar na direção que Falco havia apontado.

A temperatura pareceu diminuir conforme me afastava da vila. Acho que nunca vim para esse lado antes. A alguns metros dali havia uma pequena cabana isolada, mas um brilho vindo da frente tirou minha atenção da construção. Um brilho que dançava por entre as árvores densas.

Shimitsu empunhava as duas espadas, passando-as por entre os galhos das árvores, evitando atingi-los. Sua velocidade era alta o suficiente para que ao me aproximar pudesse ouvir o som de suas lâminas cortando o vento. Seus olhos semicerrados em sinal de seu esforço. A lâmina maior e de tom púrpura tremia um pouco, não é uma arma para se empunhar com uma única mão.

Ele parou quando a mesma lâmina atingiu um dos galhos, seu braço conjurado desapareceu assim que soltou as armas no chão. Só então pareceu notar minha presença.

— Soube que você não comeu. — Comecei, me sentando no chão próximo a ele e abrindo a toalha.

Respirou fundo e se ajoelhou à minha frente.

— Valeu. Como soube onde eu estava?

— Falco. A quanto tempo está aí?

— Desde que acordei. — Respondeu, começando a comer. — Está apimentado, me lembra a comida de minha mãe.

Ouvir o Kitsune falar sobre sua mãe fez com que me lembrasse do Clã e do motivo pelo qual parti.

— Shimitsu, por que você está nos acompanhando?

— Eu saí em uma missão para encontrar minha mestra. Passei por uma ex-cidade para encontrá-la no porão de dois malucos e ainda ser amaldiçoada por eles. Mas não é isso que importa, não é? Eu sou o único capaz de localizar seus amigos quando voltarem de sei lá onde, se é que isso ainda está de pé.

— Entendo… então é por nós.

— Não se sinta mal, é o que Trégua faria. Ela odiaria voltar para a vila agora.

— Tem tanta coisa acontecendo que nós não entendemos. Sua ligação com Arthur, uma arma ainda mais perigosa que a coisa que dizimou uma cidade por completo, aquela quimera dormindo no nosso quarto…

Havíamos buscado a besta no dia anterior. Seley sugeriu uma jaula, que se mostrou desnecessária quando ela passou a agir como um cachorrinho perto das crianças, mesmo que na forma de um lobo gigante. É claro que para a magia se manter ela deveria ficar ao lado de Sanir o tempo todo.

Terminamos de comer e Shimitsu voltou ao treinamento. Embalei as tigelas vazias e comecei a voltar para a vila. No caminho, ouvi algo vindo da cabana de antes, uma risada infantil e logo em seguida uma tosse.

Decidi que seria melhor dar uma olhada, então me aproximei da porta que não estava completamente fechada.

— Olá? — Chamei.

— O’ian? — A voz que reconheci como de George respondeu.

Ele abriu a porta, se apoiando no batente.

— Oi. — Disse ele, dando um sorriso um pouco torto.

Usava luvas grossas de couro. No chão havia um pedaço de madeira e uma lixa.

— O que você está fazendo? — Perguntei, me ajoelhando em sua frente.

Ele levou alguns instantes para responder, seu sorriso ficando ainda mais largo quando pareceu ficar envergonhado.

— Su’pe…sa.

— Certo, estou ansioso para ver. — Respondi, colocando a mão em sua cabeça e bagunçando o pouco cabelo que tinha.

Ele pareceu gostar e continuou apoiando-se no batente da porta até que me afastei, retomando meu caminho.

 

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Como esperado, vapor saía da chaminé de Falco, que provavelmente estaria preparando chá. Bati na porta e entrei assim que o homem me chamou para dentro.

Me movi até a bacia onde a louça descansava no sabão e coloquei as tigelas de molho na água.

O senhor me observava enquanto cantarolava e ergueu uma sobrancelha.

— O que está passando por sua cabeça agora?

Na realidade, minha mente estava em branco por conta do turbilhão de pensamentos que brigavam por espaço.

Decidi que conversar com Falco seria a melhor forma de orientar meus pensamentos, então é melhor começar de um ponto simples.

— Falco, quem é o George?

Pareceu se distrair em suas memórias por um momento antes de me responder. Apagou o fogo e caminhou até a porta.

— Vamos dar uma volta? Tem algo que quero te mostrar.

— É claro. — Respondi, confuso, enquanto o acompanhava.

— Imaginei que vocês pudessem perceber, mas mesmo entre essas crianças, George é especial.

Um grupo de crianças brincava sentada em uma roda, então Falco se aproximou e acariciou os ombros da mais próxima, uma garota cuja coluna parecia prestes a se projetar para fora logo abaixo da nuca. Todas elas, exceto aquela que Seley havia me apresentado como Li, cumprimentaram Falco com alegria.

— Sinto muito em atrapalhar a diversão de vocês, mas nosso amigo Golias gostaria de saber, o que vocês fariam se pudessem sair daqui e fazer qualquer coisa, não importa o tempo que levasse?

— Eu queria ser igual a minha mãe um dia.

— E eu acharia um grande tesouro.

— Tartaruga… gigante. Ver.

O garoto que segurava uma das mãos de Li olhou para ela.

— A gente não sabe… — Disse ele, uma lágrima ameaçando escorrer pelo seu rosto.

— Está tudo bem. — Falco se ajoelhou ao seu lado, abraçando os dois, a garota reagindo ao toque, inicialmente surpresa, mas se confortando logo em seguida. — Thorian vai me ajudar a trazer o chá, avisem os outros por favor. — E então cochichou para eles. — Hoje fiz bolo.

O grupo pareceu iluminado com nova alegria, se levantaram e foram juntos atrás das outras crianças.

— Vê, Thorian, cada uma dessas crianças tem um sonho, um que elas precisam se contentar apenas sonhando. Elas compartilham seus sonhos e é assim que elas vivem aqui. Elas compartilham suas alegrias e tristezas umas com as outras, mas se sentem ainda piores quando não podem fazer isso, como no caso da pequena Li.

—- E isso tem relação com George ser especial?

— Ah sim, é claro que tem. Afinal, George é o único que não tem desejos fora daqui. Ele sabe o valor de cada uma das vidas aqui, é para isso que ele vive. Não para buscar um significado em sua vida a partir de objetivos ou desejos e sim sentir a alegria genuína de estar vivo. Eu acredito que esse é o único motivo de ele ainda estar conosco, já que é aquele com a condição mais severa que eu já resgatei. Ele é um garoto forte, muito, muito forte.

 

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Shimitsu.

 

Meu corpo inteiro gritava, pedindo por um descanso que sabia que não teria tão cedo.

Cedo? Que horas são?

Abri meus olhos, meu corpo ainda em movimento, traçando finas linhas de fogo no ar enquanto minhas lâminas passavam por entre as folhas com movimentos que já estavam automáticos.

A fadiga me atingiu como um martelo assim que olhei para o céu escuro por entre as densas árvores, o peso do meu corpo parecia tão grande quanto a quantidade de estrelas que me encaravam agora.

Atingi o chão quando minhas pernas fraquejaram.

— E então, mestra, como estou me saindo? — Pensei em voz alta enquanto meu braço se desfazia.

A última coisa que senti foi um suave toque vindo do cabo de Fukushu.

Obrigado.

 

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Arthur, Palácio Esquecido, ???.

 

A pequena cabana de madeira à beira do córrego que passava próximo ao palácio se mostrava bem conservada.

Por trás de sua porta destrancada haviam vários equipamentos de pesca, como varas, redes e algumas caixas fechadas.

— Sabe, pescar, Jack? — Perguntei. — Eu gostaria de aprender.

— Agora não é hora disso. Temos que fazer o que viemos fazer e sair daqui. — O paladino respondeu, sem nem entrar na cabana.

— Sem graça…

— Vamos voltar para o palácio. Ainda temos os andares de cima para investigar.

Enquanto contornávamos o palácio, indo em direção à porta dessa vez, uma corrente de ar passou por nós, carregando uma fina areia dourada que só percebi quando fui atingido inofensivamente por ela, dando vida momentânea ao ambiente completamente imóvel, que voltou a ser assim no momento em que o vento passou.

Jack se virou para mim.

— O que foi isso?

Busquei o pequeno papel que descansava ao lado dos retratos borrados na pequena mesa, junto de um vaso de plantas que parecia ser regularmente cuidado.

“A tranquilidade do monarca persiste mesmo enquanto a gula e a ganância mancham sua glória e a luxúria a enfeita disfarçada de honra.”

Estendi o pedaço de carne para Jack.

— O que acha que aconteceria se eu comesse? É a única coisa com cheiro por aqui.

— Eu não acho que daria certo, Arthur. — Disse o paladino, enquanto considerávamos nossas opções na grande sala com três tronos dispostos à frente de um grande vitral. Uma espada presa a um pedestal, uma coroa pendendo em seu cabo.

Ao segurar os objetos, pude ver centenas de cabeças se curvarem por um instante. A mais próxima delas, que vestia roupas luxuosas, tinha um olhar furioso no rosto.

Jack arrastou a grande cama embalada em lençóis finos para revelar um alçapão, que nos levou a uma sala repleta de objetos dourados e cofres de ouro. Se pudermos levar algo daqui estaremos ricos.

— Até que não é tão ruim, já faz um tempo que estamos aqui. — Meu companheiro suspirou enquanto descansava na beira do riacho.

Duvidava que poderia pegar um peixe, mas mesmo assim lancei um anzol na água.

Me surpreendi quando senti um puxão, retirando um anel da linha.

Um homem surgiu, o mesmo que antes estava furioso, retirando alegremente um peixe da água antes de desaparecer ao lado de uma mulher com roupas simples.

— Cuidado com isso, pode ser mais uma daquelas coisas. — Disse Jack.

— Já foi. O que acha que são essas visões?

— Talvez sejam apenas memórias. Talvez nos permitam ver além de onde estamos, onde as outras pessoas também estão.

Estávamos ajoelhados, um de frente para o outro. Jack tinha as mãos em meus ombros e eu tinha as minhas nos dele. Pude ver seus olhos por baixo do capacete quando o pânico nos atingiu. Cada parte de meu corpo doía, como se estivesse se desfazendo, o tempo acabando.

— Quer saber, você não é tão ruim. — Ele sussurrou.

— O que quer dizer com isso numa hora dessas!?

A espada do Rei cortou o ar e o som de metal contra metal soou, então senti a carne rasgando na ponta da lâmina quando a imagem daquele que julguei ser o príncipe se projetou sangrando à minha frente.

 


 

Autor: Halt

Revisão: Bravo

 


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