A Calmaria Divina

Calmaria Divina – Vol. 01 – Cap. 12 – Divergência

 

Arthur, Declive Profundo

— Como assim vamos servir perfeitamente?

O homem se virou para mim lentamente, como se a paisagem o interessasse mais do que qualquer coisa.

Paisagem essa que agora era tomada pelo cheiro de madeira e carne queimada que vinha da casa a algumas dezenas de metros atrás de nós.

Eu já estava começando a me estressar quando sua mente pareceu dar um estalo, fazendo-o dar uma guinada.

— Ah sim, vocês dois vão servir. — respondeu como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.

— E que porra isso significa?!

Ele coçou a cabeça e os olhos com as mãos pálidas, como se tivesse acabado de acordar.

— Nós encontramos mais uma Pedra, mas apenas algumas pessoas conseguiram entrar. Não fui uma delas. Mas talvez vocês consigam. Vocês dois. — e voltou a apontar para mim e Jack.

— O que nos torna tão especiais? — Jack perguntou.

— Não sei, só acho que são.

— E por que os outros não poderiam vir junto? Em que tipo de lugar a… Pedra está? E o que te garante que nós vamos mesmo te ajudar com isso? — Jack tomou a frente.

— Simplesmente saber dessa arma já os torna um alvo e vocês já testemunharam a força do inimigo, imagine se eles souberem que vocês estão em posse de uma delas? Podem seguir seus caminhos, mas não acho que chegarão muito longe sozinhos.

— E como conseguir outro pedaço dessa arma ajudaria? — Shimitsu entrou na conversa.

— Assim vocês teriam nosso apoio, além de um local seguro para se abrigar. Por isso mandarei os outros de vocês para a Clareira dos Espíritos.

— Onde um criador de monstros está se escondendo. Bem seguro mesmo. — Disse o Kitsune com sarcasmo.

— Será seguro assim que vocês o expulsarem. Boa sorte, vocês dois podem vir comigo. — sinalizou para que eu e Jack o seguíssemos.

Quando notou que nenhum de nós o seguia, soltou um suspiro.

— Ah… a recompensa é das boas. Pra todos vocês.

Nesse momento, Sanir saltou das costas de Quimi e seus olhos brilharam em expectativa.

— Recompensa? Vamo lá gente, o que pode dar errado?

Shimitsu parecia irritado com a situação, eu sentia esse sentimento vazar pela nova conexão que se formou entre nós.

— Sabe, eu admito que estou curioso sobre essa tal arma. Para que exatamente ela serve? — perguntei ao homem, que voltava a se aproximar lentamente. — E sabemos tanto dessa arma quanto sabemos de você, você nem disse o seu nome.

— Eu me esqueci disso. Meu nome é Lether. A arma é perigosa. Isso é o que eu sei.

— Ah, quer saber, a clareira é caminho de casa, qualquer coisa a gente pula fora. — disse Shimitsu virando as costas. A gente se vê depois, Arthur.

— Vou cuidar bem dela enquanto vocês estiverem longe! — disse o Halfling, empolgado enquanto afagava o peito da quimera, agora em forma de um lobo maior que um leão.

Esfreguei a cabeça do animal, um pouco hesitante.

— Boa menina.

Acenei para meus companheiros e olhei para Jack, que trocava olhares com Thorian.

— Até depois, cachorrão, baixinho, Senhor Golias e cachorrinho falante. — Lether acenou para o grupo. — Boa sorte!

— Vai tomar no seu cu, cachorrinho falante é o cacete!

Thorian colocou o braço na frente de Shimitsu, que tentava sacar sua espada, e disse algo que eu não pude ouvir.

Shimitsu pareceu reclamar e virou as costas.

Lether tinha um sorriso em seu rosto pálido, se virou para nós.

— Bem, vamos?

— Mostre o caminho. — Jack disse em tom frio.

Lether assentiu e começou a andar lentamente em uma direção que saía da estrada, se distanciando da cidade.

— Para onde vamos? — perguntei.

— Até meus cavalos. Como acham que cheguei aqui?

— E para onde os cavalos nos levarão?

— Ah! Entendi. Para uma cripta a alguns quilômetros daqui. É lá que fica a entrada.

— Entrada de onde?

— Do palácio.

— Palácio?

— É, onde a Pedra está.

Desisti de perguntar. Olhei para Jack e notei que seu olhar estava fixo no homem. Chegamos em uma carruagem puxada por dois cavalos, Lether abriu a porta e olhou para nós. Jack o ignorou e sentou-se à frente.

— Grosso. — o homem pálido resmungou e assim que eu entrei na carruagem, ele fechou a porta e foi se sentar ao lado de meu companheiro, tomando as rédeas.

— Como os moradores aguentam esse cheiro de fumaça? É sempre assim por aqui?

Começamos a nos mover em direção à estrada. Por que ele teria ido andando até nós? Pensei. Outros pensamentos passavam em minha mente, como a forma com que ele sabia onde nos encontrar, mas os deixei de lado por agora.

Durante todo o caminho estivemos fora da estrada. Aproveitei a viagem para analisar minhas armas. Isso incluía a espada que eu havia pego de Strog. Ou seria de Strug?

Experimentei tocar a lâmina e notei que era realmente fria. Capaz de queimar a carne que cortasse. Quando terminava de tratar meus equipamentos com uma pedra de amolar, nós paramos.

Olhei pela janela e vi Lether se espreguiçando, Jack se levantando logo em seguida.

Saí da carruagem e vi uma pequena gruta de pedra logo em frente.

— Chegamos!

Não sei como isso pode ser a entrada de um palácio.

Fiquei atento, mas não parecia haver mais ninguém ao nosso redor.

O homem pálido se movia alegremente até a gruta e parou na entrada.

— Podem entrar.

— Você primeiro. — disse Jack.

— Então tá bom.

E entrou.

— Venham, não é tão escuro assim.

Realmente não era, era possível ver as paredes internas da pequena cripta.

Meu companheiro assentiu e entrou. Sua mão pronta para sacar a espada. Fiz o mesmo.

Logo que entramos, minha cabeça começou a girar. Lether estava em pé à nossa frente, mal ouvi sua voz que parecia distante.

— Esqueci de avisar, sempre são duas pessoas que entram, mas apenas um volta. Boa sorte.

A última coisa que ouvi antes de atingir o chão, foi a armadura de meu companheiro atingindo a pedra dura.

 

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Thorian.

Já viajávamos a algumas horas. Não tínhamos muita coisa, eu montava em um cavalo que comprei na saída de Declive Profundo, enquanto Shimitsu e Sanir montavam a quimera.

A besta ainda parecia ter receio com o Kitsune, mas não demonstrava perigo. Mesmo assim me mantive alerta.

De repente o animal parou.

— O que foi? Shimitsu?

— O Arthur sumiu.

— Como assim sumiu?

— A conexão, eu não sinto mais ele.

— Ele deve estar bem longe, deve ser isso, né? — Sanir perguntou.

— Não. Sua presença estava forte até agora. Tenho certeza de que algo aconteceu.

Shimitsu se mexia inquieto nas costas da quimera em forma de lobo gigante, então me aproximei e coloquei a mão em seu ombro.

— Vamos. Nós precisamos chegar antes do anoitecer.

— E por que diabos nós estamos fazendo o que aquele esquisito quer?

— Você não viu do que os inimigos são capazes. Nós não pudemos fazer nada além de ver uma cidade inteira desaparecer em um piscar de olhos.

— Tsk, só estou com vocês até resolver esse problema, ainda sinto esse monstro invadindo minha mente de vez em quando. E vocês não vão me deixar matá-la ainda.

— Você não pode matar ela, ela é parte da família agora. — disse Sanir, em posição protetiva, se virando para mim.

— Viu só.

— Vamos resolver isso assim que os outros voltarem. — tentei colocar um fim à discussão e seguir caminho.

A mata se fechava ao nosso redor enquanto entrávamos na floresta de Aldoria, onde a Clareira dos Espíritos fica.

— Algum de vocês já esteve em Aldoria? — Perguntou o Kitsune.

Quando ninguém se pronunciou, Shimitsu continuou.

— Vocês não vão ver nada além de alguns metros na frente de vocês, então fiquem perto. Também não ouvirão nada ao longe. E desçam dos cavalos, eles podem se assustar.

Assim que desci de meu cavalo, amarrei uma corda ao pescoço da quimera e comecei a guiar ambos os animais. Sanir continuava montado, enquanto eu e Shimitsu caminhávamos lado a lado.

De um passo a outro, tudo mudou.

Uma névoa pálida ocupou minha visão e pareceu entrar em meus ouvidos.

Os animais começaram a se debater, estavam realmente assustados. Sanir acalmou Quimi enquanto eu acudia meu cavalo, ambos firmes em minhas mãos.

— Que droga, de quem foi a ideia de colocar uma maldição na floresta? — Sanir perguntou.

— Ela surgiu já faz uns dois séculos, não se sabe como, mas para alguns como nós Kitsunes isso é uma benção. Não temos visitas indesejadas.

Com meu campo de visão limitado a dez metros à frente e minha audição abafada, segui Shimitsu, que nos guiava pela floresta.

— Estou vendo uma clareira logo ali, vamos passar a noite e depois seguimos.

Seguimos andando e uma pequena lagoa surgiu em uma clareira, assim como ele havia dito.

Busquei uma ração de viagem na bolsa e a mordi, ela quase não tinha cheiro. Mais um efeito da maldição, creio eu.

— Podem descansar, eu fico de guarda. — disse Shimitsu — Sou o único em condições, já que sou o único nativo.

— Eu te acompanho, mesmo que somente pela companhia. — Respondi.

— Deita. — Sanir tentou dar o comando à quimera, mas sem muito sucesso, então se sentou e a puxou para baixo, ela o seguiu.

— Eu vou tirar um ronco, boa noite. — ele se despediu, enquanto se aninhava em Quimi, a acariciando e oferecendo a ela um pedaço de uma barra de cereais que havia mordido.

Enchi meu cantil na lagoa e comecei uma oração de purificação. Assim que terminei, ofereci o cantil a Shimitsu.

— Está fresca.

— Obrigado.

Ele me devolveu o cantil e se sentou em uma pedra. O acompanhei.

— Sinto muito em envolvê-lo nisso. Sei que é difícil perder alguém querido. Você pode descansar se precisar, qualquer coisa eu te acordo.

— Ela era mais que alguém querida. Era a melhor e mais gentil espadachim da vila. E foi pega em uma armadilha tão cruel.

— Tenho certeza de que ela ainda olha por você e sua vila. Que a luz sagrada a guie.

— Ajudar vocês agora é minha forma de agradecimento. — ele buscou a Katana longa que estava em suas costas e a desembainhou, exibindo sua longa lâmina ametista.

— O nome dessa lâmina é Fukushu, que em uma língua antiga significa “vingança”. Ela me dizia que a vingança é a pior motivação que se pode ter. É algo que te consome e te escraviza, por isso batizar uma arma com esse nome é um lembrete de que se deve viver pelo futuro e não pelo passado.

— Ela era ótima pessoa, pelo que vejo assim como você também é. Como estão suas feridas?

— Melhores, graças a vocês.

— Você precisa descansar. Te acordarei caso precise.

— Se você está dizendo. Espero que o nariz gigante daquela coisa sirva de alguma coisa. — ele disse, em tom descontraído, dando uma curta risada que retribuí.

O tempo passou e tudo estava tão calmo que peguei no sono. O único som que se destacava eram os eventuais bufos da quimera.

— Thorian, acorda. — ouvi Shimitsu cochichando. O sol estava começando a aparecer. Sanir e Quimi ainda dormiam.

— Vem rápido, tem alguma coisa ali.

Me levantei, havia dormido de armadura, então ainda estava recuperando o equilíbrio quando o Kitsune começou a me puxar pelo pulso. Me apressei para agarrar minhas coisas e o segui.

— Em silêncio.

Paramos a alguns metros de distância da clareira e meu companheiro começou a se esgueirar em direção a algo. Havia um barranco de dois metros logo à nossa frente.

Olhamos para baixo e havia uma pequena figura de cabeça baixa arrastando os pés pelo chão. Era um humanóide magro, com um dos braços torcido em um ângulo não natural e com uma cabeça grande. Ocasionalmente tropeçava e se espatifava no chão. Parecia estar procurando algo. Frágil e vulnerável.

— Ali está o primeiro. — meu companheiro sussurrou.

A figura parou logo abaixo de nós e Shimitsu levou a mão ao cabo de Fukushu, se preparando para saltar. Foi nesse momento que a figura olhou para cima e soltou um grito de terror ao nos ver.

As árvores ganharam vida ao nosso redor. A floresta se tornou hostil.

 


 

Autor: HaltTW

Revisão: Bravo

 


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