A Calmaria Divina

Calmaria Divina – Vol. 01 – Cap. 08 – O Rei

 

 

Thane, algumas horas de distância da capital de Vantrol, Vestral.

A distância entre nós e a capital era pequena e as curvas das montanhas já estavam distantes.

Enquanto passávamos pelas planícies centrais do reino, podíamos ver alguns poucos animais selvagens que evitavam a estrada.

Durante o caminho, Thorn já estava perdendo o interesse na faca com a qual se distraía há algum tempo e eu já podia ver uma nova sessão de resmungos chegando.

Sua voz arranhava a garganta seca, soando como um rosnado.

— Ei chefe. Mesmo que esses seus “novos parceiros” estejam vivos, o que te faz acreditar que não vão nos trair?

— Arthur reconheceu a pedra, ele já viu uma delas antes, então pode ser capaz de encontrar outras, além disso, eu posso encontrá-los a qualquer momento enquanto tiverem aquele amuleto.

— Mas e se eles saírem da linha?

Conversas com esse cara são realmente complicadas. Pensei, antes de responder. Às vezes é melhor encerrar o assunto logo.

— Então eu tenho certeza de que seu machado fará o que deve ser feito.

Os olhos do bestial brilharam e ele soltou uma risada que chegava a ser macabra.

Mank preferia não se intrometer nesses pensamentos de Thorn, por isso se mantinha em silêncio o tempo todo.

Tão rápido quanto veio, o pensamento pareceu ter escapado da mente de meu companheiro, que agora tinha o interesse renovado em suas lâminas.

No céu, meu familiar, agora na forma de um falcão, vigiava nosso caminho e compartilhou sua visão comigo.

Quando meus sentidos deixaram meu corpo para assumir um novo ponto de vista, senti a brisa fraca movendo as plumas da ave, ouvi o ruído do vento sendo cortado e vi a grande capital surgindo no horizonte.

Assim que deixei a visão, avisei os outros.

— Estamos quase lá.

Grandes construções se erguiam à nossa frente, a cidade se formava ao redor dos jardins do enorme castelo ao centro de Vestral e era para lá que estávamos indo.

A estrada cortava a cidade, levanto até os portões do imponente palácio feito de pedra.

O som de madeira colidindo com madeira vinha dos campos de treinamento próximos.

Assim que chegamos, os portões da muralha já estavam abertos e dois guardas que faziam a vigia acenaram com a cabeça enquanto passávamos.

Deixamos nossos cavalos nos estábulos, onde um tratador se encarregaria de seus cuidados.

Desde que passamos dos muros do castelo, Thorn parecia uma pessoa completamente diferente. Havia endireitado a postura e guardara suas armas.

As portas do castelo eram vigiadas e estavam fechadas. Quando nos aproximamos, um dos guardas, vestindo uma armadura média e capacete que me impedia de ver detalhes de seu rosto, se aproximou com uma caderneta em mãos.

— Boa tarde, senhor Thane. Sua majestade, Rei Lance, o aguarda. Poderiam por favor guardar suas armas para que eu os guie até ele?

Coloquei minha espada embainhada em uma sacola que outro soldado nos ofereceu e então Thorn entregou seu machado para o outro, depositou um conjunto de facas de caça e de arremesso na sacola e bateu as mãos nos bolsos, para sinalizar que não havia mais nada.

Depois que estávamos desarmados, mesmo que eu soubesse que Thorn ainda tinha pelo menos mais uma pequena faca escondida na gola do manto, as portas se abriram e o guarda marchou pelo grande e luxuoso salão, que abrigava objetos preciosos em exibição, como cristais e adagas douradas. As paredes eram forradas de tapeçarias da família real, que também narravam a história de Vantrol. Em uma delas, por exemplo, há um antigo rei junto a um dragão, ambos se reverenciando.

Passamos rapidamente pelo salão e subimos um jogo de escadas em caracol, cruzamos um longo corredor e chegamos em uma grande sala ao fim. O soldado bateu na porta, assim que a resposta veio, ele a abriu.

Entramos na grande sala, nos deparamos com uma poltrona alta de frente para uma grande mesa, agora com um mapa de Celestíria estendido.

Logo o guarda fechou a porta atrás de nós, nos deixando sozinhos com Lance.

Me apressei a cumprimentá-lo.

— É um prazer revê-lo, senhor. É uma pena que seja sob tais condições.

O monarca tinha o cabelo longo e negro que cobria as marcas da idade em sua testa. Era uma figura de altura média, mas que com certeza teve seus dias de glória em batalha, mesmo não tendo participado de nenhuma guerra, que já acabaram há tempos.

Sua face bem treinada era coberta por uma expressão firme e imponente, além da confiança política em sua voz.

— As circunstâncias não são das melhores. Mas vamos direto ao ponto. Você acredita que o incidente de Vale Cinza pode ter sido provocado pelos rebeldes?

— Sim, vossa majestade e tenho informações valiosas sobre seus planos, o que deve ter feito com que não regulassem suas forças no ataque.

Meus companheiros se mantinham em pé, em silêncio, enquanto eu falava.

— E que planos seriam esses?

— Uma arma antiga, uma que eu sei como impedi-los de conquistar. Porém também acredito que seja melhor manter o mínimo de pessoas possível sabendo dessa informação, por segurança tanto de nosso objetivo, quanto pelo próprio povo.

— É tranquilizante saber que você tem um bom plano.

Pude sentir o alívio momentâneo que escapou pela voz do monarca, quem eu já conhecia pessoalmente há alguns anos.

Lance inclinou-se sobre a mesa e olhou para nós.

— Eu tenho outro assunto a ser tratado. Com a destruição de nossa principal rota comercial com Aldoria, planejo encontrar seu rei pessoalmente, precisarei de uma escolta responsável e qualificada.

— Seria uma honra apoiá-lo durante seu caminho.

— Ótimo, partimos em três dias.

 

 

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Thorian, Declive Profundo.

“Monstros que aprisionavam como objetos de estudo qualquer um que os interessasse”, essa foi a descrição dos gêmeos que obtivemos com os moradores.

Me sentia mal enquanto andávamos pela cidade, em direção ao local indicado pelos moradores como a casa dos gêmeos. Não conseguia parar de pensar naquele sentimento dualístico.

Minha mente estava tão nublada que o barulho ao redor não passava por meus ouvidos.

Nunca me senti tão próximo de um ser divino, dizem que um apóstolo é rodeado por uma presença como essa. Mas ao mesmo tempo, havia algo sombrio. Uma gota de sangue no poço.

Senti um toque macio em minhas costas, com a força de um tapa.

— Thorian, acorda. Como você pretende lutar desse jeito?

Shimitsu parecia ver através de mim, como se meus pensamentos fossem palpáveis.

— Eu sou uma Kitsune, sei como as pessoas se sentem. E sei que você está preocupado. Nós precisamos de todos com a cabeça no lugar.

Jack, que estava mais próximo, descansou uma mão em sua espada enquanto olhava para mim.

— Não teremos nossas respostas se morrermos lá. Ou se deixarmos eles morrerem.

Pela voz do outro, ele sentia o mesmo que eu, mas suas prioridades se voltavam ao criminoso sobrevivente. Dessa vez não precisaríamos proteger ninguém além daqueles que estiverem em cativeiro.

— Que sua luz nos guie até aqueles em perigo. — comecei uma pequena prece, tentando me concentrar.

— E nossas espadas sejam empunhadas pela justiça. — Jack completou.

Mantivemos o grupo mais próximo à medida que nos aproximávamos da periferia da cidade. O céu assumia seu tom vermelho conforme o crepúsculo se aproximava e o casarão se destacava, com uma cerca alta ao redor do jardim mal-cuidado.

— A gente já pode colocar fogo na casa? — perguntou Sanir.

— Assim que a gente tirar a Trégua de lá.

— Pelo que entendi, essa tal de Trégua é tipo você, só que melhor. É isso?

Shimitsu olhou bem para o Halfling antes de responder.

— Vocês vão saber quem ela é quando a encontrarmos.

Arthur testou a porteira, que rangeu ao seu toque.

— Vai quebrar fácil.

Me aproximei agarrando a grade de madeira velha e podre com as duas mãos e a puxei.

Se aquela era mesmo a casa, seus moradores não se importavam com a segurança.

O mato alto tomava conta do jardim. Havia uma trilha de grama pisoteada que levava à porta, mas que se dividia em certo ponto, levando aos fundos do sobrado.

Quando chegamos na bifurcação, uma coisa nos chamou atenção. Sangue. Sinalizamos uns para os outros e todos seguimos os rastros até um grande alçapão de pedra, que estava igualmente manchada de vermelho.

Me adiantei em direção ao cadeado, devolvendo o tridente às costas.

— Dou um jeito nisso.

— À vontade — Sanir respondeu.

Agarrei o grande cadeado enferrujado e tentei quebrá-lo. Na segunda tentativa ele cedeu. 

Ergui o pesado alçapão e um cheiro pútrido nos atingiu.

— Eu vou na frente.

— Se você está dizendo. — Shimitsu deu de ombros, ao mesmo tempo em que vi Arthur analisando seu pingente preso ao colar remendado.

 

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Shimitsu.

Olhei para meus companheiros, principalmente para Thorian que agora abria nossa entrada no casarão.

— A gente precisa acabar com ele o mais rápido possível. — Resmunguei.

Thorian se virou para mim, suspirando, logo após abrir o grande alçapão de pedra e o cheiro de sangue e morte nos atingir como uma explosão.

— Ah… Isso vai dar um trabalho…

Após uma pausa, respondi lentamente, mantendo minha voz firme, enquanto preparava minhas espadas, segurando a de minha mestra com meu braço conjurado.

— Não vai.

Uma escada longa nos levava para algum tipo de porão, um que se mostrou imenso.

Um grande corredor, cheio somente de celas de metal, o chão era coberto de sangue endurecido. Ao olhar para as figuras ao meu redor, sabia que não era o único prestes a vomitar.

— Será que ele está aqui embaixo mesmo? E que caralhos eles fazem aqui? — Arthur exclamou com dificuldade.

— O que eles fizeram é algo que nem mesmo Olac, o mais piedoso dos deuses, pode perdoar. — Jack deixava a fúria vazar por sua voz, enquanto apertava o cabo de sua espada até que sua luva metálica começasse a estalar.

— Já não importa onde ele está. Eu o mandarei direto para o inferno — respondi, olhando para os corpos pendurados como fantoches nas paredes ou abertos em mesas. Mutilados, com os órgãos marcados com anotações presas a eles. Haviam humanoides de diversas espécies, Humanos, Elfos, bestiais, – Arthur pareceu ficar tonto ao ver um Aviano sem uma das asas – só não vi nenhum anão, já que eles nunca saem de seu reino, essa era mais uma das informações que Trégua compartilhou com a vila.

A maioria deles parecia já ter sido morto há tempos, mas os cadáveres continuavam preservados, como objetos de estudo.

Assim como aquele desgraçado disse.

Olhava em volta, sabendo o que encontraria, mas com medo de encontrar.

Algumas das celas estavam abertas, praticamente todas tinham algumas folhas de pergaminho com anotações e desenhos.

Sanir se aproximou de uma dessas, planejando alcançar um dos pergaminhos, mas Jack o segurou pela camisa.

— Não toque nisso. Devemos honrar os mortos.

Após alguns minutos no longo corredor, todos andavam em silêncio conforme nos acostumávamos com o cheiro, mesmo sendo algo difícil.

Meus olhos travaram em uma cela escura. Eu não vi o que tinha nela, mas podia sentir. Olhei para a espada em minha mão direita e tropecei.

Passando pelas grades havia sangue, como nas outras, mas o sangue ainda estava úmido.

Ela pode estar viva.

 


 

Autor: HaltTW

Revisão: Bravo

 

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