Bruxa Errante, a Jornada de Elaina

Bruxa Errante, a Jornada de Elaina – Vol. 08 – Cap. 07.1 – A Noite em que Choveu Poeira Estelar

 

Deixe-me lhes contar uma história de quando eu era apenas uma jovem.

Essa é uma história que nunca contei a ninguém antes; uma memória de minha infância.

O local em que nasci, Bielawald, era um lugar sem graça, onde respeitamos as tradições e conveniências. Grande parte das terras era coberta por uma floresta muito densa. A cidade foi erguida onde todas essas árvores haviam sido derrubadas, e era abarrotada de casas feitas com tijolos brancos. Mesmo na época em que nasci, o local já tinha uma longa história, pois a maioria das casas eram velhas, cheias de rachaduras ou cobertas de hera. As velhas construções pareciam prestes a ser devoradas pela floresta.

E eu amava isso.

Mesmo ela sendo assim, ainda adorava aquela vista.

— Ah, já são 12 horas.

Eu estava curtindo um dia de folga com uma leve leitura, quando o gong, gong do sino reverberou pela cidade. Aqui, o sino tocava toda noite às doze horas.

A batida não apenas sinalizava o fim do dia; tinha um propósito muito mais importante.

Nesta cidade, quando o relógio bate doze horas, acontece um ritual importante, algo que todos os cidadãos devem fazer.

— …

Abri a janela, fechei meus olhos, e com as duas mãos juntas, fiz as minhas orações aos céus, preenchidos com estrelas.

Fechei os meus olhos por exatos 30 segundos. Rezar por 30 segundos era um dos costumes desta cidade.

As crianças começam a rezar a partir do seu quinto aniversário. Desde então, fui ensinada pela senhora do orfanato a olhar para os céus a noite e rezar quando o sino tocasse.

Naquele tempo, eu era alguém despreocupada, então eu só acenei com a cabeça e disse que entendia, mesmo sem realmente entender, e comecei a ficar acordada até às doze para olhar os céus a noite e rezar junto às outras crianças do orfanato

Eu não era muito boa em ficar acordada até tarde e sempre acabava cochilando, então normalmente rezava enquanto estava só meio-acordada, esfregando meus olhos. Frequentemente dormia em pé. Também houveram vezes que eu acabava dormindo antes das doze, e a moça do orfanato ficava terrivelmente zangada.

Em Bielawald, parecia que esse ritual noturno era mais importante do que qualquer outra coisa.

Sempre me perguntei qual era o significado por trás dessa tradição, mas eu parecia ser a única nesta cidade que tinha tais dúvidas.

Perguntei a meus colegas de orfanato, e até mesmo questionei a moça que cuidava de mim no orfanato, mas ninguém sabia a razão por trás da tradição. Tudo que recebia era sempre um…

— Eu nunca parei pra pensar sobre isso.

…Todos ficaram confusos com a minha pergunta.

Já quando perguntei para a moça do orfanato, fui levada até uma das salas dos fundos no mesmo instante e me foi dito em um tom severo: — Entendeu? Você absolutamente não deve perguntar isso fora daqui.

Ela continuou:

— Esse costume surgiu bem antes de qualquer um de nós nascer. Eu não nasci aqui, então não sei todos os detalhes, mas parece que é proibido perguntar esse tipo de coisa por aqui. Então não vá perguntar isso a mais ninguém.

Ela pressionou um dedo contra meus lábios, selando minha boca para garantir que não a interrompesse.

— Então, isso é um tabu?

— Sim. E se você não quer ser selecionada para o ritual, é ainda mais importante não perguntar isso.

Ouvi isso quando tinha cinco anos.

Nove anos se passaram. Desde aquela noite, eu orava todos os dias, mas sempre me questionava sobre a origem da tradição.

Em toda primavera, ocorria uma cerimônia em nossa cidade que chamávamos de  “O Ritual”.

Para termos uma colheita abundante, uma garota era selecionada para o ritual anual, trancada num templo que ficava no meio da cidade e encarregada de rezar a noite inteira. Normalmente, só uma garota era escolhida, mas dependendo do ano, podiam ser duas ou até três garotas. Eu não fazia ideia de qual era o critério que usavam para escolher.

O que diabos eles faziam, afinal?

Pensei que se falasse com alguém que esteve no ritual,  conseguiria entender, mas infelizmente, agora que tinha treze anos, não conhecia ninguém a quem pudesse perguntar algo tão escandaloso assim.

Quando eu tinha dez anos, a moça do orfanato foi escolhida para o ritual, e ela desapareceu. Nunca mais a vi de novo.

Lembro-me desse dia como se fosse ontem.

Trajada em um vestido branco e usando uma linda maquiagem em seu rosto, ela adentrou o santuário sem fazer contato visual com ninguém, encarando o chão com olhos vagos sob um céu noturno banhado por estrelas e cercada por uma multidão de pessoas.

— A dama sem nome, nossa escolhida, entrou no santuário.

Assim que o chefe da vila anunciou isso, ele, que estava liderando o ritual, fechou a porta do santuário.

E então, supostamente, ela continuou rezando dentro do santuário a noite inteira.

Supostamente, ela rezou fervorosamente a noite toda, pedindo por uma colheita abundante. O sino soou e todos nós rezamos também; ela continuou a rezar mesmo quando todos adormeceram.

Na manhã seguinte, acordei cedo e fui para o santuário, mas quando cheguei lá, ele já havia sido aberto e as pessoas já estavam circulando por lá.

Ela não estava no santuário.

As pessoas da cidade disseram:

— Essa garota já nos deixou.

— Parece que ela enjoou de nossos costumes.

— Duvido que vá aparecer de novo algum dia.

E sem sequer dizer adeus, ela subitamente desapareceu.

Depois disso, investiguei os acontecimentos da melhor forma que pude.

Passei meus dias indo à escola, voltando ao orfanato quando acabava, e então indo até a grande biblioteca que abriga todos os livros de nossa cidade.

Não havia nada sobre o folclore. Muitas pessoas clamavam que houveram fenômenos sobrenaturais durante a nossa história, ou até mesmo que a terra em si foi possuída por um espírito vingativo.

Muitos dos livros que falavam sobre o folclore foram comidos por traças, e qualquer página que falasse diretamente foi censurada. A maior biblioteca da cidade não tinha quase nenhuma  informação sobre o mundo fora daquelas muralhas verdejantes. Não tinha nada escrito sobre o mundo lá fora, e o que tinha era senso comum. Não havia nada que eu pudesse aprender na grande biblioteca.

Então, onde eles guardavam o verdadeiro conhecimento?

— Hm, com licença, você tem o próximo volume deste livro?

Carregando vários tomos devorados por traças, eu perguntei à bibliotecária.

Depois de me encarar com um olhar afiado, ela perguntou: — …Por que você quer ler isso?

Eu tentei desviar da pergunta dela. — …Só por curiosidade.

Mas a bibliotecária só balançou a cabeça. — …Infelizmente, não temos.

Nesse momento, percebi que depender dos livros não me levaria a lugar algum. Como já tinha chegado até ali, minha curiosidade não poderia sumir tão facilmente, então, no final, desisti de procurar na biblioteca e decidi tentar outra tática. — Huh? O mundo exterior?

Comerciantes e viajantes costumavam visitar Bielawald. Fiquei de olho nos recém-chegados e questionei-os sobre o mundo fora de nossa cidadezinha.

— Sim. Me conte sobre, por favor — Aproximei-me de um comerciante, sem vacilar, e continuei: — Tenho interesse em outros lugares.

— …Hum — O comerciante sorriu sem jeito e desviou os olhos. — …Me desculpe, senhorita. Quando cheguei, disseram-me claramente que não devia falar do mundo afora, então não poderia dizer mesmo que quisesse. — Parecia ser uma regra daqui.

Foi quando soube que alguma coisa estava errada. Mesmo forasteiros estavam sendo forçados a seguir esta regra. Descobrir que isso estava sendo mantido em segredo me deixou ainda mais interessada. O que eles poderiam estar tentando esconder? Mais importante, as pessoas aqui sabiam que algo estava sendo escondido?

De qualquer forma, a minha curiosidade só aumentou, e depois disso, passei ainda mais tempo perguntando e ouvindo o que os mercantes e viajantes tinham a dizer. Agora, deixe-me relatar o resultado de meus esforços.

— Hmm. Então você quer saber sobre outras terras, huh? Tudo bem, gatinha, só venha aqui comigo.

Queria sair deste país, mas não em uma companhia mercante. Eu recusei.

— Veja, mocinha! Essa borboleta é de uma espécie realmente rara, e é vendida por um preço alto. Aparentemente, ela vive na floresta que cerca esse país. Você sabe alguma coisa sobre?

Nunca estive fora do país, mas acho que tentaria pegar uma borboleta se eu achasse uma. Não daria isso a um mercante, no entanto.

— Uh-huh, você quer saber sobre o mundo afora, huh…? Certo, eu vou te contar uma parada legal. — Oh, eu tenho a sensação de que vou conseguir algo bom dessa vez! — Mas antes de te contar, você tem namorado? Se você quiser, nós podemos ir num café— E adeus.

— Invés de aprender sobre o mundo exterior, não quer aprender mais sobre mim? Não…? Entendo…

De qualquer forma…

Resumindo o que consegui de minha investigação:

— Eu não consegui nenhuma informação útil!

Era de tardinha, e eu estava reclamando comigo mesma enquanto retornava à grande biblioteca.

— Que merda foi essa? Pelo visto, mercadores não passam de um bando de pestes nojentas com mentalidade da sarjeta, não é? Todos eles só falavam “Oh, você é fofa” ou ”Quer tomar uma bebida?” Só sabem cuspir palavras melosas e só. Queria apenas ouvir suas histórias, mas nenhum deles se importava. De qualquer forma, por que todos os adultos que visitam nosso país dão em cima de uma garota de treze anos?

Eu abri um livro enquanto estava com o rosto carrancudo.

— Faça silêncio na biblioteca — Um comando claro e direto havia sido transmitido de algum lugar. — Você não tem qualquer bom senso?

Olhei em volta, procurando a dona da voz, e eu vi a figura de uma jovem mulher.

Era uma linda maga.

Seu cabelo era quase cinza. Seus olhos eram de uma cor lápis-lazúli. Ela estava vestida de forma simples, com um robe preto e um chapéu triangular. Em seu peito, ela vestia um broche no formato de estrela.

Será que ela acha isso estiloso?

Ela parecia ter em torno de vinte anos, apesar de que eu não conseguia dizer sua idade exata, porque sua graciosidade e compostura a faziam parecer anos mais velha.

De onde diabos ela saiu? Bem, provavelmente estava aqui o tempo inteiro, mas…

E então, a mulher aproximou-se de mim e inclinou sua cabeça em sinal de curiosidade. Seu olhar recaiu sobre os livros em minha mão.

— Você tem interesse em outros países?

— …!

E pensar que ela conseguiria deduzir isso só por me observar lendo um livro…! Magos são incríveis…!

Eu estava em êxtase por dentro.

É vergonhoso admitir, mas ainda não tinha saído de Bielawald sequer uma vez, o que significava que nunca tinha visto uma maga antes, e não tinha ideia de como a magia e aqueles que a usavam se pareciam.

Por essa razão, estava mais excitada do que maravilhada com o fato de que a mulher na minha frente tinha adivinhado meu desejo em um instante.

Como ela soube?

— M-magas podem ler a mente das pessoas…? — perguntei com fascinação e antecipação.

Será que todas as pessoas com poderes psíquicos se tornam magas? Seria isso?

Mas a maga rapidamente balançou a cabeça em resposta à minha antecipação.

— Não. Só te vi perguntando coisas perto do portão.

Eu deixei escapar um longo e desanimado suspiro.

— Ah… Faz sentido…

— Você não acha que é rude agir tão assim toda desapontada…?

Após um profundo interrogatório, descobri que essa mulher é uma viajante que chegou aqui dias antes de eu começar a minha busca por conhecimento, e que estava visitando a região sozinha. Ela também me disse que era uma maga, ou mais precisamente, uma bruxa, mas eu realmente não entendia qual era a diferença entre as duas. Sabia que magos não eram exatamente como eu imaginava, e realmente não me importava com a diferença, então a explicação dela entrou num ouvido e saiu pelo outro. Resumindo a história, ela é uma viajante. Fim.

— Mas isso é raro, não é? Achar uma garota que tenha dúvidas sobre as conveniências e tradições de sua terra — comentou ela enquanto me encarava, mostrando uma expressão que sugeriria desapontamento.

— …. — Depois de responder sua iniciativa com silêncio, perguntei: — …Está me dizendo que eu sou estranha por ter dúvidas, igual a todo mundo?

Pude dizer pela forma que suas sobrancelhas se moveram que minhas palavras foram ásperas.

E então, ela sacudiu sua cabeça.

— Não, pelo contrário. Eu estou impressionada.

— …?

— Só estou feliz que alguém por aqui bate bem da cabeça.

Eu realmente não entendia o que ela queria dizer.

Continuei a inclinar minha cabeça, confusa.

Talvez seja porque ela parecia poder ler minha mente, ou talvez os magos realmente consigam ler mentes, mas ela olhou para mim e disse: — Leis e regulamentos são geralmente criados com o intuito de beneficiar quem os criou. Ter dúvidas sobre eles é bom. Parece que ninguém aqui tem a mínima ideia se eles estão sendo beneficiados ou não por seguirem as regras. Comparado a eles, você é bem espertinha.

E por aí vai.

Acabei falando uma frase que é bem popular por aqui.

— Eu nunca parei para pensar sobre isso.

Provavelmente estava com uma cara de espanto na hora, já que a maga riu.

— Bem, você realmente não é o tipo de pessoa que pensa se é astuta ou não, não é?  Você até tem uma cara de lesada.

— …A única coisa que entendi é que você tá tirando uma comigo.

— Se você não entendeu, então tudo bem.

Ela pareceu chateada e soltou um suspiro.

Por algum motivo, tive a sensação de que essa pessoa iria contar-me tudo que estava morrendo de vontade de saber. Eu tinha um sentimento de que, ao contrário daqueles comerciantes inúteis e imprestáveis, ela iria satisfazer minha fome por conhecimento

— Hm… — Então a encarei e disse: — Senhorita maga, você poderia me contar sobre o mundo exterior?

Em resposta a essas palavras que exigiam toda minha coragem para pronunciar, ela acenou com a cabeça e disse: — Sim, é claro.

Mas logo depois de ter dito isso, ela balançou a cabeça e emendou: — Mas hoje não dá.

— Como assim? — Perguntei.

— O Sol logo irá se pôr.

— …Como assim?

Não estava entendendo o que ela queria dizer.

Me senti um pouco irritada por ter sido deixada no escuro assim, mas ela gentilmente pôs sua mão em meu ombro, como numa tentativa de me reconfortar.

— Amanhã, tudo bem? Não posso fazer isso hoje — Ela repetiu, mas enquanto falava, ela sorriu e olhou para fora da janela da biblioteca. — O céu hoje vai ser incrivelmente lindo, sabe?

Lá fora já estava tão escuro que dava para ver todas as estrelas no céu.

Mas se era bonito ou não… Bem, eu não podia dizer de onde estava.

— Venha à biblioteca amanhã. Se vier, irei lhe contar tudo quanto é história.

Depois de me forçar a aceitar esse odioso contrato, a maga saiu da grande biblioteca. Depois que ela saiu, eu li meu livro por um tempo, e depois saí também.

Essa noite, as estrelas estavam lindas.

Não havia uma única nuvem no céu e aqueles pontinhos brilhantes se estendiam até os confins da Terra, parecendo que elas iriam despencar a qualquer momento.

O céu estava tão lindo que as pessoas da cidade reuniram-se para observar.

— …..

Não.

Aparentemente, as pessoas estavam se amontoando nas ruas por outra razão.

— Ahh, que horrível…!

— O que diabos…?!

— O que é isso…?! É terrível…!

A comoção das pessoas não tinha nada a ver com as estrelas. Toda a atenção estava voltada para o céu ao oeste.

— …..

Certamente, havia algo estranho lá; estranho o suficiente para sobrepor a beleza daquela paisagem.

As estrelas estavam suspensas, brilhando, no céu escuro. Uma delas era notavelmente maior e mais brilhante que as outras. Essa estranha estrela apareceu subitamente, deixando um rastro brilhante enquanto fluía de um canto ao outro nos céus.

Eu certamente não havia visto essa estrela ontem. A cidade estava um caos por causa dela e palavras confusas surgiam de todas as direções.

— Que infortúnio.

— É um sinal! Um aviso de um desastre natural!

Era minha primeira vez vendo essa estrela na minha vida, mas parecia que algumas pessoas estavam familiarizadas.

Alguém disse: — A estrela da morte de vinte e dois anos atrás reapareceu.

Alguma outra pessoa respondeu: — Apressem-se, se não conduzirmos o ritual logo, vai ser tarde demais.

Foi neste exato momento em que percebi que já haviam se passado treze primaveras desde que nasci.

 — …

E foi aí que minha consciência ficou nublada.

Atrás de mim, alguém pôs um pano em minha boca. Era sufocante e tinha um odor estranho. Quando eu respirei, minha mente ficou tonta e meu corpo, pesado. Tudo ficou dormente, minhas pálpebras ficaram pesadas e, por fim, perdi a consciência no meio da estrada.

— Parabéns. Você foi selecionada para o ritual deste ano. É uma grande honra. — Alguém disse para mim.

— Agora, vista essas roupas. Você deve usá-las para rezar no santuário. — Outra pessoa disse.

— Oh, maravilhoso. Ela é perfeita — Outra pessoa bateu palmas, alegre.

— Estamos todos prontos agora. Certo, vamos começar o ritual? — Finalmente, alguém puxou a minha mão, e nós começamos a andar.

Não tinha certeza de quantos dias se passaram desde que desmaiei. Tínhamos o costume de rezar toda noite às doze horas, então eu deveria ser capaz de ter uma noção pelo número de crentes, mas minha mente estava tão atordoada que sequer pude fazer isso. Pode ter se passado uma semana inteira ou apenas um único dia.

 — ….. —

Quando percebi, já tinha sido escolhida para o ritual. Já não tinha nenhuma das dúvidas que eu normalmente teria sobre ele. Eu sequer tinha dúvidas sobre não ter dúvidas. Quanto mais tentava pensar sobre, mais minha mente se recusava a trabalhar. Assim, continuei caminhando em direção ao santuário.

Tentei resistir quando as portas do santuário foram abertas, mas continuei andando, como se o meu corpo estivesse sendo puxado para dentro.

Lá dentro, a luz brilhava de inúmeras velas.

— A dama sem nome, a nossa escolhida, adentrou o santuário.

As palavras do chefe da vila ressoaram logo atrás de mim. Quis virar a cabeça para vê-lo mas àquela altura, as portas já tinham se fechado.

Apenas a luz das velas iluminavam aquele breu, onde nem a luz do luar alcançava.

 — …..

Somente então eu notei que havia um cheiro estranho dentro do santuário, mas novamente, já tinha perdido minha habilidade de pensar direito.

Comecei a andar num caminho estreito que conectava-se às profundezas do santuário. Tinha certeza de que meu corpo não estava obedecendo a minha mente. Ele estava apenas se movendo como uma marionete.

Sequer haviam velas para providenciar um fio de luz em meio aquele breu. Era escuro e úmido, e o cheiro estranho só ficou mais forte conforme eu adentrava.

Depois de um tempo, eu parei.

— …Ah!

No fundo daquele lugar, descobri centenas de flores; lindas flores brancas crescendo entre muitos, muitos ossos. Acima de uma pilha de esqueletos — todos vestidos na exata mesma roupa que eu estava usando —, as lindas flores estavam completamente florescidas.

Somente então eu finalmente percebi uma coisa.

A moça do orfanato, que me ensinou tantas coisas, nunca saiu.

Eu percebi o verdadeiro propósito do ritual.

— Eu nunca pensei nisso.

O fato de que todos a quem perguntava sobre nossas tradições me dava sempre a mesma resposta não era porque ninguém nunca havia questionado nossos costumes. Mais provável era que todos que tinham algum questionamento eram silenciosamente mortos.

A moça do orfanato devia ser uma dessas pessoas.

Esse lugar era ainda pior do que imaginava.

— Ah, ah…! — Mesmo finalmente compreendendo, já era tarde demais para fazer qualquer coisa. — Não… Não…! Eu não quero morrer… Não ainda…!

Neste lugar fechado onde nem a luz do luar podia alcançar, o cheiro que estava atordoando meus sentidos crescia inexoravelmente, cada vez mais forte e mais denso.

Talvez fossem resquícios da substância que tinha inalado mais cedo. Ou talvez estivesse vindo das flores.

Mesmo que tentasse resistir, mesmo que tentasse escapar, o controle sobre meu próprio corpo estava gradualmente sendo roubado.

E então, eu desmaiei em cima da pilha de ossos igual a quando me sufocaram com um pano sob minha boca abaixo daquele céu estrelado.

Não conseguia respirar. Estava com falta de ar. Me senti sonolenta, e minhas pálpebras começaram a cair.

— Por que… Isso aconteceu…?

Venha à biblioteca amanhã. Se vier, direi-lhe tudo que quer saber.

Uma tristeza profunda me preencheu quando percebi que eu não viveria para ver o amanhã. Mesmo que finalmente tenha encontrado alguém que me entendesse. Mesmo que finalmente tenha tido a chance de conversar com alguém como ela.

Sem cumprir minha promessa com ela, eu vou morrer, aqui e agora.

— Ah, se eu só tivesse perguntado o nome daquela maga — lamentei, melancólica.

Minhas pálpebras, que ficavam mais pesadas a cada segundo, lentamente se fecharam.

Nesta cidade, qualquer um que desafie o status quo era taxado como inimigo, trancado, e sufocado.

Vi todo o tipo de coisa num breve momento depois que fechei os meus olhos. Elas pareciam um feixe de luz descontrolado. Cenas da minha vida cotidiana passavam na minha mente e desapareciam. Os dias que passei no orfanato, os dias que passei lendo na grande biblioteca, memórias das pessoas ficando bravas comigo porque não cheguei a tempo na reza noturna, e as tolas memórias de quando eu sentia admiração pelas garotas que eram escolhidas para o ritual.

E então…

Muito antes…

A cortina desceu sob a minha curta vida de treze anos.

 

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Dizem que, há um lindo cometa que aparece a cada vinte e dois anos nesta região.

Estimou-se que ele apareceria nesta exata primavera, e todas as cidades na área estavam realizando festivais, ou vendendo  alguma coisa  especial numa tentativa de atrair turistas.

Claro, eu, como uma viajante que apenas vagava com base nas minhas próprias vontades, caí em seus esquemas e me senti obrigada a comprar todos os tipos de coisas vindas de todos os tipos de lugares.

Por exemplo, havia uma velha vendendo pão numa barraca na calçada, dizendo que era um  “pão especial do cometa”. Noutra ocasião, uma pedra sem nada destacável era vendida por um negociante que afirmava se tratar de um  “talho de um fragmento do cometa”.

Era suficiente para me fazer pensar que todos os turistas que vinham animados para ver o cometa que aparecia de vinte e dois em vinte e dois anos eram idiotas com flores no lugar do cérebro.

Nada me deixava mais brava do que pessoas gerenciando negócios obscuros! Mas colocando isso de lado, Quem poderia ser essa bruxa de pavio curto mastigando o suposto pão do cometa?

Isso mesmo, euzinha.

 — ….

Eu já consigo ouvir alguém perguntando, então você realmente comprou o pão especial do cometa? O que aconteceu? Mas eu gostaria de esclarecer o seguinte: eu definitivamente não fui induzida por uma velha a comprar o pão de calçada que estava vendendo.

— Ouvi dizer que havia um lugar chamado Bielawald por aqui. Você sabe algo sobre? — perguntei a ela. Isso mesmo, eu subornei ela! Comprei um pouco do pão que essa velha estava vendendo para ver se ela me falava algo útil.

Infelizmente, o lugar que estava tentando encontrar, Bielawald, foi abandonado pelos seus cidadãos há muito tempo e caiu em ruína, então não estava em meu mapa. Naturalmente, subornar essa vovó para ela abrir o bico e me falar a localização era a única opção.

— Huh? Você quer ir para Bielawald? Não sei o que te falar… Aquele lugar não existe mais já faz um tempo… Será que eu consigo lembrar…? Minha memória é meio confusa, sabe?

— Mh-hmm.

Então comprar o pão não foi o suficiente para você abrir essa sua matraca, huh? Então vai ser assim? Entendo, entendo.

— Aqui, fique com isso. — Lhe dei uma moeda de ouro como suborno.

— A localização de Bielawald, certo? Lembro como se fosse ontem. Empreste-me o seu mapa por um segundo.

A velha rapidamente marcou a localização no mapa.

É sério que foi tão fácil assim?

E foi isso que aconteceu. Tive que sacrificar uma moeda de ouro, mas eu considerei isso um gasto necessário.

— Só me diga uma coisa: o que você quer fazer num lugar como aquele? Não têm nada lá, sabe?

Enquanto escrevia a localização no meu mapa, a velha mulher estreitou seus olhos sedutoramente, como se encarasse para um amante ou algo assim, e então olhou para mim.

Eu não sabia como responder.

Não havia nada no lugar para onde eu estava indo. A cidade foi abandonada pelos seus próprios moradores antes mesmo de eu nascer, e a única coisa que deixaram para trás foram ruínas abandonadas, apodrecendo através dos anos solitárias. Claro, como não havia nenhuma pessoa, não havia nenhuma luz, e provavelmente era mais quieto do que qualquer outro lugar.

— É exatamente por isso que quero ir até lá.

Tinha certeza de que o céu visto de tal lugar seria mais brilhante e lindo do que qualquer outro.

Quando se é um viajante, às vezes você se depara com lugares que não eram como você esperava. Bielawald foi um desses lugares.

Não porque era completamente diferente do que eu imaginava, ou porque era meio decepcionante, mas sim porque no lugar indicado em meu mapa — essas ruínas nas profundezas da floresta — algo muito estranho estava acontecendo.

— …O que é isso?

Parecia que a floresta achou que a partida dos moradores era uma boa chance para tomar o lugar que lhe pertencia, porque a cidade estava desaparecendo no verde. Provavelmente era uma linda cidade branca no passado. Agora, no entanto, hera cobria as paredes das casas que alinhavam-se na avenida, espalhando-se cada vez mais.

A estrada da qual eu estava pisando agora provavelmente era feita de pedregulhos, mas o tempo passou, ervas cresceram, e várias flores de várias cores haviam desabrochado.

Certamente não há ninguém vivendo nessas ruínas.

Até esse ponto, não tinha visto nada surpreendente. Mas havia uma única coisa que destacava-se para mim: uma humilde residência num canto distante da cidade em ruínas.

— Certo, pessoal, vamos cantar algumas canções. Alguém tem alguma sugestão?

Por uma pequena janela, eu podia ver uma mulher junto com algumas crianças que sorriam em sua direção.

Muito bem. Pelo jeito, há gente morando aqui, pensei comigo mesma enquanto me aproximava da janela. Mas, de repente, a mulher e as crianças desapareceram, como se fossem aparições.

A única coisa que havia lá era uma casa velha, desgastada pelo tempo, igual a todas as outras construções da cidade.

Parecia ter um orfanato por aqui, mas…

Não importava o quanto eu me aproximasse, ou quantas vezes eu piscasse os meus olhos, a jovem mulher e as crianças nunca apareciam novamente.

— Parabéns! Você foi selecionada para o ritual.

Alguém, em algum canto, estava falando com outra pessoa.

— Agora, vista estas roupas.

Quando eu olhei para a direção da voz, vi uma velha mulher dando roupas brancas para uma jovem menina.

— Vinte e dois anos se passaram desde que a estrela da má sorte apareceu.

— Chegou a hora.

Mais a frente, havia dois homens conversando na rua.

— Então, ela vai aparecer novamente nesta primavera?

— Sem dúvida alguma.

— O que vamos fazer? Quem vamos escolher para o ritual?

— …Certo. Eu conheço a garota perfeita para isso.

Eu me aproximei deles, com intenção de conversar, mas eles sequer me deram bola, não importava o quanto eu me aproximava. Só continuaram sua discussão com olhares preocupados em seus rostos.

Eventualmente, eu soltei um: — Hmm. — E andei até ficar entre os dois homens, mas…

— Ouvi dizer que essa garota tem dúvidas sobre nossas tradições.

— Aparentemente, ela tem até feito uma pesquisa na grande biblioteca.

— A bibliotecária até me deu algumas dicas sobre isso. Não há duvidas.

…Eles me ignoraram.

Sequer olharam para mim. Queria testar algo, então disse: — Oláááá! — E balancei a minha mão em frente dos homens. — Como vão? — Comecei a pular. — Eu sou a Bruxa Cinzenta, Elainaaaa! — Eu olhei para os dois.

Mas, obviamente, me ignoraram.

Como você já esperava, esse desrespeito sem vergonha me deixou com raiva.

— Ei, você é surdo por acaso? — Estendi a minha mão e toquei no ombro de um dos homens.

— ….

Mas a minha mão atravessou o corpo dele. Minha mãozinha, a qual estendi com um pouco mais de força que o normal, parecia afiada o suficiente para cortá-lo do ombro para baixo. Ainda assim, o homem em questão manteve uma expressão séria, olhou ao redor da cidade, e anunciou: — Certo, como planejado, nós iremos trancar uma garota no santuário novamente este ano.

Foi nessa hora que eu percebi que ele era uma aparição.

Na direção da qual o homem estava olhando, havia uma pequena construção.

O santuário no centro da cidade parecia ter sido desgastado pela passagem do tempo, igual as outras construções. Musgo havia crescido na porta, como se fosse um selo.

— …

Eu estava um pouco conturbada por causa do que as aparições falaram. Ainda assim, pus a mão nos portões do santuário. Se o que eles disseram for verdade, então era um costume trancar garotinhas nesta pequena construção.

Por algum motivo, estava curiosa.

— Ô de casa…

A porta coberta de musgo abriu-se facilmente. O verde que cobria a porta aparentava ter se estendido para dentro do local, já que as paredes estavam cobertas pelas plantas nas áreas onde a luz do sol alcançava.

Quando pisei lá dentro, o chão rangeu. O interior do santuário era surpreendentemente vazio, e para a minha própria decepção, tudo que eu vi foi um bando de nada.

Uma cidade fantasma, abandonada por seus habitantes. No coração dela, havia um santuário solitário, coberto por silêncio e cheio de significados ocultos. Eu tinha certeza de que havia algum tesouro por ali, mas não tinha nada lá dentro, e não importava o quanto eu o adentrava, a única coisa que encontrava era mais e mais musgo.

Era sempre a mesma coisa, independente do quão fundo estava.

Não tem nada aqui. Que entediante…

Acabei por ver uma garota de cabelos pretos vestida em roupas brancas, deitada em cima de ervas, mas ela parecia ser uma aparição assim como as outras pessoas, então eu nem me preocupei.

Achava que teria algo interessante nessa cidade abandonada, principalmente neste lugar misterioso, mas isso era claramente nada mais que uma fantasia minha.

Fui traída pelas minhas próprias expectativas, e estava me sentindo muito decepcionada. Ainda assim, eu fui ainda mais fundo no santuário, até que…

Squish.

— Gyaah!

Uma voz surgiu abaixo de mim. Senti uma sensação estranha sob meu pé, que devia estar pisando em um monte de musgo.

— ….

Estava convencida de que a garota de cabelos pretos era só uma ilusão, e comecei a andar como se ela sequer estivesse aqui, mas…

Pera aí, o que está acontecendo?

Meu pé estava em cima do rosto da garota, e não estava atravessando o seu corpo. Na verdade, eu estava sentindo seu rosto.

— …..Huh?

O que é isso? É sério mesmo?

A palidez tomou conta de mim. Tirei meu pé de cima dela, agachei do seu lado, e estendi a minha mão.

Cutuquei a bochecha dela, e era macia e molenga.

— …Ngh — A garota de cabelo escuro soltou um grunhido.

Depois, dei umas palmadas de leve em seu rosto.

Ela era, claramente, material.

— …Oww. — Ela grunhiu.

— ….

Fiquei em silêncio por algum tempo.

Certo, não importa como eu veja, ela claramente está viva…

Não importa como eu veja, ela claramente não é uma ilusão…

…Pera, então quer dizer…

Quem iria esperar que teria algo vivo num lugar como este?

 

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Tradução: Heu

Revisão: B.Lotus

 

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