Bruxa Errante, a Jornada de Elaina

Bruxa Errante, a Jornada de Elaina – Vol. 07 – Cap. 06 – Um Conto de Monstros e Humanos Equivocados

 

Um dia, aproximadamente quatrocentos anos atrás, a história deste canto do mundo mudou de uma forma absurda.

Do nada, um dragão gigantesco apareceu e começou a atacar as pessoas.

Com seu corpo enorme, coberto de escamas alvicelestes que brilhavam como gelo sob a luz do luar, pisoteava casas e campos somente com seus pés. Com suas presas e garras afiadas e pontudas, dizimava o gado. E pior de tudo, um único bater de suas imensas asas era o necessário para mandar corpos pelos ares, como bonecas de pano.

Ninguém sabia o que ele queria. Parecia estar atacando em um estado de fúria violenta.

O dragão arrasava um país atrás do outro, deixando um contínuo rastro de devastação, até finalmente desaparecer no céu, como se estivesse satisfeito consigo mesmo antes de inevitavelmente pousar em um outro país e repetir todo o processo sanguinário.

Incontáveis países foram levados à ruína pelas aparições repentinas do dragão. Nações inteiras e suas histórias, apagadas da existência.

Todos que viviam durante aquele período acreditavam que, eventualmente, o dragão viria e destruiria tudo.

Eventualmente, todas as nações restantes concordaram que deviam parar de brigar umas com as outras, deixando de lado todos os seus conflitos e desentendimentos, para então se unir. Pararam de se isolar e começaram a compartilhar informações. Ainda assim, o dragão continuava sua jornada de destruição.

Um país construiu armas para lutar contra o dragão e convocou soldados. Outro contaminou seus campos com veneno no intuito de intoxicar o dragão. Um terceiro fortificou suas casas, portões e muros na esperança de que conseguiriam suportar a força do dragão.

No entanto, nenhum deles teve um pingo de chance, e obviamente, as nações continuaram a cair. Vez após outra, enfrentavam o dragão, e como toda vez, o dragão saía vitorioso.

Por fim, as pessoas perceberam que não seria possível derrotar o dragão, mesmo trabalhando em conjunto. Entenderam que estavam enfrentando uma força muito maior do que elas.

Decidiram que não tinham opção senão pedir ajuda.

As pessoas vivendo naquela região tinham um indivíduo em mente, provavelmente a única pessoa que conseguiria lutar de igual para igual contra o dragão.

Era uma bruxa que vivia completamente sozinha, nos confins da pequena e remota floresta que fazia fronteira com os países.

Essa bruxa possuía um poder incrível, mas era por causa desse poder que não gostava de se meter nos assuntos de outras pessoas e tinha escolhido uma vida de isolamento. Entretanto, as pessoas perceberam que se elas não tinham nenhuma forma de derrotar o dragão sem sua assistência, então teriam que implorar a ela por ajuda.

Oficiais de todas as nações se apresentaram a ela, com sorrisos amigáveis, e sem um único rosto antipático entre eles.

— Certo, compreendo a situação — disse a bruxa, levantando-se — Farei algo a respeito disso.

E então ela desafiou de frente o dragão furioso.

— Oh, poderoso dragão! Por qual motivo esmaga essas vidas humanas?

— AAAAAAAAAAARRRHHH! — vociferou o dragão.

— Ah, você é o tipo de dragão que não entende a linguagem humana. Certo…

Se conversar fosse uma opção viável, não teriam tido o trabalho de vir tirar uma bruxa de dentro da floresta, eu suponho, a bruxa pensou calmamente consigo mesma.

Depois disso, ela atingiu o dragão com diversos tipos de feitiços ofensivos.

Até mesmo um dragão ficava perdido quando confrontado com o poder avassalador de uma bruxa. Da mesma forma que o dragão conseguia facilmente destruir pessoas e seus países, a bruxa conseguia facilmente derrotar o dragão.

— Aliás, quanto à recompensa… Quando eu terminar de lidar com esse assunto, — disse a bruxa para a delegação que havia vindo recrutá-la — espero ser paga numa quantia extraordinária, o suficiente para viver o resto da minha vida em pleno conforto.

— Oh, hm… essa é uma… quantia bastante elevada, realmente — hesitaram os oficiais.

— Hmm? É um preço bem pequeno a se pagar quando a salvação de seus lares está em jogo, não acha? — disse a bruxa zangada.

Ela tinha um certo lado sombrio quando o assunto era dinheiro.

Por fim, a bruxa derrotou o dragão. Inúmeras vezes. Mas não importava quantas vezes ela o derrotasse, ele nunca morria. Ainda que ela fosse muito poderosa, não era capaz de matá-lo. Essa era só uma prova de sua indomável força vital.

— Se ele se recusa a morrer não importa o que eu faça… Então me parece que não tenho escolha.

Cansada de lutar por tanto tempo, a bruxa conjurou um feitiço no dragão.

Um feitiço de aprisionamento.

Ela prendeu o dragão dentro de uma rocha.

Fazendo isso, a bruxa tinha, finalmente, dado um fim ao dragão que vinha aterrorizando a região.

— Quatrocentos anos.

Acariciando a rocha na qual o dragão dormia, ela disse:

— Meu feitiço não durará para sempre. Após quatrocentos anos, ele provavelmente se dissipará. Quando este dia chegar, nós devemos mais uma vez unir forças e confrontá-lo. Então, pelos próximos quatrocentos anos, vocês devem fazer o que puderem para se preparar!

Com isso, ela moveu a rocha que guardava o dragão para os confins da floresta.

Conta-se que quando a bruxa terminou seu serviço, desapareceu no ar, bem em frente aos olhos das pessoas.

Aparentemente até agora, a rocha com o dragão está serenamente descansando ao lado da casa onde a bruxa um dia viveu.

Essa parecia ser a lenda do dragão dessa região, porque ouvi a mesma história em todos os países que visitei nos últimos dias.

Foi aumentada de formas diferentes dependendo do país, mas basicamente era assim que a história era contada. Resumindo, os rumores questionáveis de um dragão aprisionado em uma grande rocha no meio da floresta haviam todos sido originados desta fábula.

Claro, isso não era tudo. Talvez por causa da popularidade da lenda, quando alguém castigava uma criança nessa região, geralmente incluíam uma ameaça exagerada como:

— Se você não se comportar, o dragão vai voltar!

Mas é claro, as crianças geralmente respondiam às ameaças com uma confiança exagerada também:

— Eu não ligo. Se o dragão voltar, eu o derrotarei!

Em todo caso, foi assim que a lenda do dragão tinha se enraizado de forma tão forte nas vidas das pessoas.

Porém, a verdadeira rocha onde o dragão estava preso havia, ao contrário dos rumores, sido perdida no tempo e esquecida.

Percebi que ninguém estava interessado na verdade de fato por trás da lenda. Uma rocha só largada ali, coberta por musgo, no meio da floresta, pelos últimos quatrocentos anos. Hoje em dia não havia nem sinal da casa da velha bruxa. Provavelmente havia sido demolida há muito tempo.

Se havia ou não um dragão realmente era irrelevante. A rocha podia ser uma simples rocha que ocasionou toda essa história. Era assim que as pessoas que viviam lá pensavam.

Mesmo hoje sendo o fatídico dia… o dia no qual o dragão retornaria.

— ……

Coisas como lendas e fábulas tendem a desaparecer ao longo do tempo, porque somente as pessoas que estavam vivas naquela época sabem a verdade.

Então, para ser honesta, não dava muita atenção à lenda, até ver com meus próprios olhos.

Até me encontrar com ela.

— Mwa-ha-ha-ha! Já faz um tempinho, humanos! Hoje, estou me libertando da minha apertada prisão!

Naquele momento, a rocha se quebrou como um ovo, sendo destruída pelo lado de dentro, com uma garota saindo dela.

— A dragão Luciella renasceeeeeeu!

A menina estava claramente referindo-se a si mesma. Aparentava ter uns dezoito anos de idade, mas se chamava de “a dragão”.

Seu cabelo era verde claro e seus olhos eram carmim. Fora isso, parecia ser uma garota comum. Contudo, aparentemente, era um dragão. Oh, e um detalhe que esqueci de mencionar era que ela estava completamente nua naquele momento.

— …Kyah!

Pensando comigo mesmo que gostaria que ela se vestisse logo, cobri meus olhos e soltei um gritinho.

Acho que estou me repetindo, mas permita-me explicar mais uma vez a situação na qual me encontro.

Após quatrocentos anos, o selo na rocha havia se quebrado, e no meio da floresta, o dragão havia sido ressuscitado, mas ele era uma garota.

Esse desenvolvimento dos fatos foi completamente inesperado, então estava bastante perplexa. Vamos dar uma olhada na menina à minha frente de novo.

Ela não tinha asas, nem cauda. Por fora, realmente parecia um humano comum. Na verdade, as únicas coisas que entregavam que ela não era um humano eram os dois pequenos chifres crescendo em sua cabeça. Oh, e acho que seus dentes eram um pouco mais afiados que o da maioria das pessoas.

— Huh? Quem é você? Eu sabia que tinha sentido um estranho par de olhos me encarando. Você quer lutar? Quer? Huh?

Sua personalidade também era um pouco mais afiada que o normal. De qualquer forma, ela realmente tinha a forma de uma garota humana normal. E, talvez por ter dormido por tanto tempo, não parecia muito inteligente. Acho que a Senhorita Dragão não havia percebido que sua forma tinha mudado. Nem que estava pelada.

Ela veio em minha direção, o único humano em sua frente, e me encarou, seus olhos cintilavam um tom dourado refletindo as luzes vacilantes, e então bufou ar na minha cara.

— Oh? Tá com medo? Você pensou que eu fosse soprar fogo em você, não pensou?

Ela estava brincando comigo.

Com um “aaah” ela abriu bem sua boca e logo riu triunfante.

— Mwa-ha-ha! Aposto que pensou estar prestes a ser comida por mim, não é? Mwa-ha-ha! Estou brincando! Uma garotinha como você não tem muita carne e nem parece ser saborosa.

Ela estava claramente tentando me provocar, mas eu não sabia ao certo porquê.

— Você é quietinha. Qual é o problema? É sua primeira vez vendo um dragão? Ou só está encantada pelo quão incrível eu sou? Hmm?

Tudo isso estava começando a me dar dor de cabeça, então naquele momento, peguei meu espelho de mão e virei na direção dela.

— Acho que não há limites para admiração, especialmente quando se está na frente de alguém tão… AAAAAAAAAHHH!

— Você grita muito alto — reclamei.

— I-i-isso… sou… eu? Isso sou eu? — Luciella, a dragão, estava tremendo. — Sério? É assim que pareço agora? Huh? O que aconteceu com as minhas asas? Minha cauda? Minhas escamas?

Balancei minha cabeça, silenciosamente.

Citando uma passagem de uma das lendas contadas nesta região, eu disse:

— De acordo com a bruxa que te aprisionou, uma maldição foi incorporada ao selo que fazia com que, “quando o dragão um dia acordasse, renasceria em uma forma humana e não traria nenhuma destruição”.

— O que disse?! — A Senhorita Dragão estava nervosa. — Grrr… você! Leve-me até ela agora mesmo! Imediatamente! Onde ela está?! Por aqui?!

E assim, ela me deixou para trás e foi batendo o pé pela trilha da floresta. Tinha acabado de acordar, mas a Senhorita Dragão tinha uma personalidade tão… viva, que era difícil de imaginar que estivera dormindo até agora há pouco. Isso não me importava muito, mas me fazia imaginar que tipo de pessoa mandaria alguém levá-la a algum lugar e em seguida sairia sozinha por aí.

Ou talvez não tenha entendido que quatrocentos anos se passaram.

— Um…

Estendi uma mão em sua direção.

— O que está fazendo?! Para onde devo ir…? — De repente, como uma boneca quebrada, Luciella, a dragão, parou e caiu no chão, incapaz de se mover.

— ……Muita fome… — murmurou, fraca.

Centenas de anos de fome devem tê-la atingido de uma única vez.

— …… — Depois de um momento de hesitação, eu disse — Antes de tudo, você quer comer alguma coisa?

— …… — Ela sentou-se, devagar. — Me leve a um restaurante delicioso agora mesmo! — Estava chorando.

— Antes de irmos, poderia vestir algumas roupas?

— …Ok. — Luciella limpou suas lágrimas com uma fungada.

Isso estava tudo acontecendo terrivelmente rápido, mas se eu bem entendi a situação, a garota era, aparentemente, o dragão que um dia aterrorizou essa região. Ou pelo menos isso era o que ela dizia. Agora, no entanto, estava aprisionada na forma de uma jovem moça, deitada no chão, completamente nua, e de jeito nenhum eu a deixaria lá nesse estado. Então decidi antes vesti-la com algumas roupas, e depois ir para uma cidade próxima.

— Aonde você quer ir? Já estive em todos os países dessa região no passado, então sei me localizar.

— Você está falando sério? — indaguei.

Ainda estava tentando compreender toda essa história repentina enquanto alegremente fazia sinal para ela subir na vassoura, e ela, animada, se sentava atrás de mim.

E foi assim que as cortinas se abriram na nossa jornada que duraria vários dias.

Luciella dizia ser o dragão que havia sido aprisionado.

— Então você é realmente um dragão, huh?

— Sim.

— Parece bem improvável, mas…

— Bem, não é surpresa que não acredite em mim. Nunca poderia imaginar que, quando acordasse, estaria em um corpo tão fraquinho. Acho que não posso dizer muita coisa além de que você precisa acreditar em mim.

Seja como for, ela saiu de dentro de uma rocha, então definitivamente tinha que ser o dragão. Por ora, decidi que a única coisa a fazer era entrar na brincadeira.

Mas se ela fosse o dragão…

— ……

Se fosse, e eu puxasse seu saco, então poderia ser que ela me conte as lendas dessa região pela perspectiva do próprio dragão.

Basicamente, conseguiria confirmar as histórias e esclarecer as lendas antigas.

…Já podia até sentir o cheiro do dinheiro.

— O que está acontecendo com você? Está fazendo uma cara de mau.

— Essa é minha cara normal.

— Oh… Estranho…

— Rude.

No dia em que o dragão se libertou, eu nos levei em direção à civilização mais próxima. Perguntei se havia algo que ela quisesse comer, e a garota, vestindo minhas roupas, respondeu: — Algo saboroso! — Então sem pensar muito, fomos até um restaurante bonitinho.

E quando chegamos lá…

— Você! Eu disse que queria comer algo delicioso, não disse?! O que é isso de escolher um restaurante assim tão casualmente?! Acha que sou idiota?!

Quando chegamos aos nossos lugares e fiz meu pedido, a autoproclamada dragão começou a bater na mesa e a gritar alto. Eu não podia fazer nada além de me encolher em desespero frente às suas ações.

— A maioria da comida neste país é gostosa.

— Huh? Do que está falando? E por que está com esse sorrisinho presunçoso?

— ……

— ……

Em pouco tempo, a comida chegou.

Sem pensar muito, alinhei os pratos que havia pedido e expliquei o que era cada um, como se eu fosse uma cliente fiel do restaurante. Com um olhar bastante satisfeito comigo mesma, claro.

— Essa é a pizza especial deste país. É feita com um molho picante.

— Entendi. É por isso que ela é inteira vermelha?

— Esse é o pão especial deste país. É feito com um molho picante.

— Entendi. É vermelho vivo.

— E essa é a sopa especial deste país. É feita com um molho picante.

— Só tem comida picante nesse país?

— Se você pedir pratos típicos deste país, é isso o que vai receber.

Não falhei em parecer satisfeita comigo mesma enquanto apresentava minhas gotas de conhecimento sobre a culinária.

— Por sinal, se você é o dragão da lenda, se lembra que há muito, muito tempo, havia um país que envenenava a comida que davam a você?

— Hmm? Acho que me lembro disso… vagamente.

— É esse país aqui.

— Quê?

— O molho vermelho presente em todas essas comidas foi refinado do veneno originalmente inventado para te matar.

   No fim das contas, a lenda do dragão tinha tido uma reviravolta nesta região. “O dragão era muito glutão”, dizia a lenda “então ele procurava por comida em diversos países. Dentre eles, somente a comida do nosso país tinha um sabor que fazia com que o dragão assoprasse fogo de sua boca”. O orgulho local quanto a isso era bastante óbvio.

— Então o que está acontecendo aqui? Os idiotas desse país comeram veneno por vontade própria? Eles são burros?

— Bem, provavelmente estavam desesperados por comida naquela época. — Então encarei a garota sentada do outro lado da mesa e inclinei minha cabeça de forma interrogativa. — Se você é mesmo o dragão, sem dúvidas consegue comer uma comida picante assim, certo?

— Mwa-ha-ha-ha! Que ridículo! — Aparentemente, isso havia lhe provocado. — Se isso é o veneno que eu tomei séculos atrás, então minhas papilas já se recuperaram! — E, entusiasmada, se preparou para comer.

Ela comeu.

…E então chorou.

— Waaaaaaaaaaaaaaaahhh! — Lágrimas caíram dos olhos de Luciella. — V-você… você é um demônio…?! De jeito nenhum eu consigo comer algo assim…!

Isso não era algo que esperava ouvir de um dragão que costumava atormentar as pessoas…

Se tivesse que chutar, parecia que, de alguma forma, quando ganhou a forma humana, perdeu a maioria de suas características draconianas. Agora restava só um vestígio de seus poderes passados.

— ……

Eu não estava particularmente faminta, então enquanto Luciella saboreava seus pratos com lágrimas escorrendo pelas suas bochechas vermelhas, comi um pouco de pão normal com manteiga. Não via muita graça na comida apimentada tão especial para esse país.

Quanto à Luciella, ela continuava a mastigar, secando as lágrimas no seu rosto. E não parou nos pratos apimentados, mas continuou a pedir diversos outros pratos também, deixando somente uma pilha de pratos vazios e restos de comida.

Por fim, depois de terminar de comer, ela estava abanando a si mesma com a mão enquanto dizia:

— Uau, essas roupas estão apertadas. Principalmente no peito.

Wham! Um punho bateu na mesa.

— Eep! …O que houve? Você está assustadora…

De quem poderia ser este punho?

Exatamente, era meu.

— Haha… Nada, não, fique tranquila.

Bem, como havíamos terminado de comer, o próximo item a se comprar para ela eram roupas.

A esse ponto, estava começando a me sentir como se estivesse em um tipo estranho de encontro às cegas, ou algo do tipo. Tentei tirar essa ideia da cabeça quando fui pagar nossa conta.

— ……

O preço que me esperava era tão absurdo que fez com que todo o sangue do meu rosto, que estava um pouco vermelho por conta da moderada quantidade de comida picante que havia comido, fosse imediatamente drenado.

— Hmm… Que tal esse aqui? Eu fico bonitinha, não fico?

Nós fomos a uma boutique.

A cortina do provador se abriu e saindo de trás dela havia indiscutivelmente uma linda menina. Estava vestindo uma roupa bastante simples, que consistia em um tomara-que-caia e uma saia, com uma boina para esconder seus chifres. Os restos das minhas roupas haviam sido descartados em um canto próximo. Seu peito não parecia mais estar apertado, como se podia notar na forma como ela o estufava, orgulhosa. Tive vontade de nocauteá-la.

— Caramba! Caiu muito bem em você! — A vendedora estava generosa com seus elogios.

— Eee-hee-hee! — Luciella parecia particularmente suscetível à bajulação e sorriu desavergonhada. — Yoo-hoo, vou comprar esse aqui!

— Sim, sim.

Eu paguei. Era indiscutível o fato de seu robusto corpo ter alargado consideravelmente as minhas roupas, então isso era um gasto inevitável.

Depois disso, nós fomos em muitas outras lojas e compramos umas mudas de roupas e umas roupas de baixo para ela.

— Tudo bem, por que não encontramos um lugar para ficar? — sugeri.

Procurei um lugar, com Luciella logo atrás de mim. Como a viajante veterana, não esqueci da minha feição satisfeita.

— Esse país é conhecido como a Terra da Hospitalidade por causa de sua culinária, moda e suas pousadas serem todas incríveis. Qualquer um iria concordar, é perfeito para viajantes.

— Uh-huh… — Com sacolas de compras em ambas as mãos, Luciella deu uma longa e vasta olhada ao seu redor. — Sinto como se já tivesse vindo aqui antes, mas não me lembro.

— …Não estou surpresa. Você ficou presa naquela rocha por um bom tempo.

 

 

 

Sem mencionar que, quatrocentos anos atrás, você destruiu esse lugar por completo, então…

Era obviamente um país muito diferente daquela época. Na verdade, quase todos os traços do tempo em que Luciella vivia como um dragão tinham desaparecido.

— …Por quanto tempo eu dormi? — Ela balbuciou, admirando uma cidade da qual não conseguia se lembrar, um pouco triste.

Pude perceber que sua falta de confiança na agora desconhecida cidade estava vagarosamente dando lugar a um ardente sentimento de ansiedade, por ter sido deixada para trás pelo tempo.

— …Imagino que o motivo pelo qual não tenha nenhuma memória desse lugar é provavelmente porque muito tempo se passou enquanto você dormia.

Parei de olhar para ela e direcionei meus olhos à cidade. — Porém, acho que é simplesmente porque o cenário está bastante diferente.

Há muito tempo, ela olhava para estas cidades do céu, como um dragão, mas nunca visitou nenhuma delas de verdade. E isso tinha limitado sua perspectiva. A ficha de que ela estava dentro de uma dessas cidades que via de cima ainda deve estar caindo.

Entretanto…

— Na sua forma atual você está muito mais apropriada para viver na cidade.

Não fazia mal a ela poder andar pela cidade, pra variar um pouco.

Naquele dia, quando chegamos aos alojamentos, Luciella disse:

— Quero tentar tomar um desses banhos!

E logo que entramos no quarto, ela tirou suas roupas e entrou no banheiro. Logo após, gritos terríveis puderam ser ouvidos do lado de dentro:

— Aaaaaahhh! Isso é tãããããão bom!

Conforme esperava ela sair, preocupada o tempo todo com as reclamações dos vizinhos, lia sobre as lendas que eram contadas nesta região.

— ……

Dependendo do país, do autor, e porque todo tipo de exagero havia sido adicionado à história original (talvez para ficar de acordo com várias pessoas influentes), a forma como o conto progredia em cada lenda local era um pouco diferente umas das outras.

Por exemplo, em uma versão, o dragão morreu no final. Em outra, o dragão e a bruxa mataram-se um ao outro. O roteiro básico do dragão surgir, perturbar os humanos, e a bruxa derrotá-lo parecia se manter constante, mas por conta das mudanças ao longo dos anos, uma variedade de histórias foi criada.

Como resultado, a verdade havia ficado embaçada.

— Ei, você. Terminei meu banho. — Luciella saiu do banheiro quando eu estava prestes a terminar meu livro de lendas.

Seu cabelo longo estava encharcado e ela estava completamente ensopada.

— ……

Ela não devia estar familiarizada em como viver igual a um humano, visto que sua natureza ainda era a de um dragão.

— Você tem que secar seu cabelo com uma toalha quando toma banho, sabia? — disse, enrolando uma toalha ao redor do seu cabelo.

Quando foi que eu virei sua serva…?

Indiferente à minha pergunta em voz silenciosa, Luciella fechou seus olhos como se gostasse da sensação que a toalha produzia e então disse:

— Mm, qual o nome desse pano macio?

Ela estava olhando para a cama na qual eu estava sentada.

— Isso é um futon.

— Futum?

— Não, é futon.

— Furão?

— ……

Terminei de secar seu cabelo.

— Ótimo! — Assim que terminei, ela correu para a cama e se atirou. Se enrolou no saco de dormir e ficou como uma lagarta num casulo.

— Ahhhhhh… Isso é tão bom… — A expressão de Luciella logo se tornou um sorriso bobo. Nós estávamos em um hotel barato, mas os sacos de dormir da Terra da Hospitalidade eram encantados com um feitiço reconfortante que os tornava difíceis de se resistir.

Luciella tinha tomado a forma de uma bola e soltou um grande bocejo de sono, mas meus livros, que estavam empilhados em cima do saco de dormir, escorregaram e, o barulho das páginas a trouxeram de volta à realidade.

— Q-q-q-que foi isso?! Um ataque inimigo?!

Luciella escapou do feitiço do saco de dormir com movimentos bem ágeis.

— Oh, me desculpe… Esses são meus livros — disse, pegando do chão os volumes caídos.

— …Huh. — Sua mão se estendeu na mesma direção que a minha. — Essa sou eu, não sou?

Ela pegou um dos livros de fábulas locais que eu havia comprado. A capa era decorada com um dragão enorme pisoteando um prédio.

— ……

Conforme eu olhava, ela passava a ponta do seu dedo na capa, parando na aterrorizante imagem de um dragão.

— Que nostálgico.

Ela folheou o livro como se estivesse com saudades de uma época passada, como se estivesse relendo um diário da sua juventude, e murmurou algumas palavras:

— No passado, nunca pude encontrar um lugar para descansar. Mesmo se decidisse tentar me assentar em algum lugar, não pertencia a lugar nenhum, e não importa onde fosse, era um estorvo… — Sem terminar o pensamento, fechou o livro com força, batendo um lado com o outro, e devolveu para mim.

— …Obrigada. — Eu peguei o livro de sua mão e o coloquei na mesa de cabeceira.

— Então, menina. Por quanto tempo exatamente eu dormi?

— ……

— Você evitou essa pergunta à tarde, mas não ficarei surpresa, não importa quanto tempo tenha passado. Não precisa omitir isso. Me responda.

Bem, se você diz…

— …Quatrocentos anos.

— Entendo… Então dormi por muito tempo — disse para si mesma. — Isso significa que não há ninguém vivo que se lembra do tempo em que eu vim à sua cidade.

Ainda assim…

Ainda que esse fosse o caso, ela devia estar experienciando emoções complicadas. Não havia sido esquecida, mas estava sempre sendo retratada como uma vilã terrível.

Sua expressão demonstrava solidão.

— E você se vê representada em algum desses documentos? — Eu inclinei minha cabeça.

— Está me estudando também? — Ela inclinou a cabeça da mesma forma que eu — Você me levou para comer, me levou a vários lugares, e sou grata por isso, mas… qual é o seu objetivo aqui?

Ela estava provavelmente tendo algumas dúvidas. Luciella estreitou seus olhos e me olhou desconfiadamente.

— …… — hesitei, e então disse: — As lendas que são contadas por aqui são todas consideradas verdades absolutas, mas dependendo de onde você está, elas podem ser diferentes. E com tantas diferentes versões da história sendo contadas quatrocentos anos após o fato, quem poderia ter certeza do que realmente aconteceu naquela época? Quero ouvir a versão original da história.

E, claro, se as circunstâncias permitissem, também gostaria de ganhar uma graninha em cima da verdade, mas não precisava falar essa parte em voz alta.

— Resumindo, estou interessada em você.

Não havia nada mais a ser dito.

Ao ouvir minhas palavras, a expressão de Luciella suavizou levemente.

— Você tem o caráter mais honesto que qualquer humano que já conheci — disse ela.

— Sério? Você não conheceu muitos humanos, né?

Ela suspirou:

— Sei o suficiente pelas histórias.

Há muito tempo…

Há muito, muito tempo.

Quando ela nasceu, as pessoas da sua cidade natal a observavam e a achavam horrorosa.

— O que há com essa criança…?

— Ela é muito estranha…

— …Uma abominação.

Em uma cidade onde todos eram mais ou menos iguais, ela nasceu com uma cor de pele diferente, o que instantaneamente a fazia ser considerada uma estrangeira.

Todos a excluíram.

Provavelmente porque pensavam que ela traria má sorte.

A aparência incomum da menina era resultado das circunstâncias do seu nascimento. Sua mãe tinha tido um caso com alguém de outra tribo, mas mesmo que essa tenha sido a dimensão do seu delito, era razão mais do que suficiente para ser rejeitada pelo seu povo.

Em sua terra natal, era proibido ter filhos com membros de outra tribo. Para manter sua raça viva, a procriação só era permitida entre membros da mesma tribo.

Sua mãe foi exilada por ter violado a lei e nunca mais foi vista, mas deixou a garota para trás.

Sua mãe fugiu. Fugiu da responsabilidade de criar sua filha recém-nascida, da mesma forma que fugiu de casa.

As pessoas não deixariam uma bebê recém-nascida simplesmente morrer, então a criança foi repassada de um parente a outro, sendo criada por uma série de parentes relutantes.

Ninguém amava a menina.

Sua aparência fazia dela um alvo fácil de bullying.

Nada mudou, mesmo quando ela cresceu.

— Ela é um monstro. Não há o que discutir. — As pessoas a chamavam de monstro.

— Bem… é de se questionar porquê ela não foi embora ainda. — Não havia uma única pessoa dentre eles que tentou ser seu amigo.

— Não olhe pra mim, monstro! — Ela era ameaçada com violência.

— Ah, você é muito feia! Um monstro como você deve ser tratada assim mesmo! — Às vezes, as pessoas a atormentavam só por diversão.

Quando se aventurava do lado de fora, a cercavam, socavam e chutavam, até que ela voltasse para casa, toda machucada.

Nenhuma única pessoa na cidade ficava do lado dela.

Sua vida era miserável.

— …Por quê?

Por que ela era a única que tinha que suportar tal tratamento? Por que tinha que aguentar tanta dor? Todo dia sofreu com o abuso deles, e todo dia chorava, sozinha.

Escondendo sua vergonha, ia até seus parentes para pedir ajuda.

Entretanto…

— Desculpe… se eu for visto com você, me tornarei um excluído também.

…Eles não a salvaram.

— Você entende, né? Você é um estorvo. Não me procure mais.

Eles não estendiam uma mão a ela.

— Não quero ver seu rosto nunca mais. Se você entendeu, então saia logo daqui.

Todos a rejeitavam.

Ela vivia todos os dias sozinha, sem ajuda de ninguém, passando muitos anos assim.

Então, quando não conseguia mais suportar essa dura realidade, saiu de sua cidade.

Procurando um lugar no qual ela poderia pertencer.

— Na terra dos dragões vermelhos, eu era a única com escamas azuis e brancas, então me sentia desconfortável.

Enquanto saíamos da Terra da Hospitalidade na minha vassoura, ela se sentou atrás de mim, contando os eventos do seu passado de forma indiferente, como se estivesse contando um conto de fadas.

— Para as pessoas da minha terra natal, eu não era nada além de uma estrangeira. Por isso fui embora e saí em uma jornada. Há muito, muito tempo…  Essa é uma história de antes de vir a essa região.

Um dia, um dragão apareceu.

Era assim que as lendas começavam, mas claro, o dragão havia vivido partes de sua vida que não tinham sido registradas nas histórias, e já esperava que houvesse alguma razão pela qual ela veio para cá. Pode parecer meio maluco da minha parte, mas sempre fico imaginando as histórias e motivações dos vilões nos contos de fadas.

Vilões não são simplesmente “pessoas más”. Eles só são maus de uma certa perspectiva.

— Ei, você — Luciella sussurrou, como que para si mesma, sentada na minha vassoura e olhando para o horizonte — Eu quero… Você sabe… Quero um lugar onde pertencer. Algum lugar em que possa relaxar e viver minha vida.

Olhei na direção aonde estávamos indo e respondi:

— Você diz isso mas… Poderia ser mais específica?

— Queria um lugar que fosse tranquilo, onde as pessoas sejam boas. O tipo de lugar que me aceitaria. — Ela confirmou com a cabeça — E mais importante de tudo, um lugar onde possa dormir em segurança seria o ideal!

— Bem, então, que tal a Terra da Hospitalidade, onde nós passamos a noite ontem?

Eu podia ouvir sua risada sair pelo nariz.

— Não, lá não. Um lugar como aquele acabaria comigo. Especialmente minha língua.

— Você realmente não gosta de comida picante, huh…?

Conforme falava, de repente me lembrei de uma coisa.

Na noite anterior fiquei acordada até bem tarde, mas uma hora me rendi ao sono e ao cansaço e dormi antes mesmo de Luciella.

Quando despertei pela manhã, ela já estava acordada, então era possível que Luciella não tivesse dormido bem ontem à noite.

— Como é o próximo lugar?

Ela inclinou sua cabeça.

Eu balancei a minha.

— Acho que você não vai gostar muito desse lugar também.

Especialmente se o que deseja é um lugar tranquilo e seguro onde possa dormir.

Por que o próximo lugar é conhecido como…

…a Terra das Munições Mágicas.

 

 

A bruxa que lutou contra o dragão anos atrás se chamava Natasha, mas na Terra das Munições Mágicas, ela era conhecida pelo nome oficial, Natasha, a Grande e Poderosa, e se você tivesse amor à sua vida, não a chamaria de nenhum outro nome. As pessoas desse país veneravam a bruxa Natasha. Ela era mais que um personagem de contos de fadas, era um ícone religioso.

Consequentemente, havia estátuas, livros e objetos variados relacionados à Natasha, a Grande e Poderosa, espalhados pela cidade.

A avenida principal era lotada com dezenas de cafés que se diziam ser: “o restaurante preferido de Natasha, a Grande e Poderosa”. Slogans parecidos com o intuito de atrair clientes podiam ser vistos na frente de hotéis e barraquinhas de rua, como também em lojas de roupas, armas, magia, ferramentas, e muitas outras. Incontáveis lojas tinham o nome de Natasha, a Grande e Poderosa, estampado nelas. Isso me fazia questionar quantas lojas a bruxa Natasha tinha realmente apadrinhado e como ela podia ter tantas lojas favoritas. Onde estava a fidelidade à marca? Mas ninguém aqui questionaria isso. Natasha, a Grande e Poderosa, era uma figura intocável nesta região.

Quando viu tudo isso, Luciella ficou abismada.

— Ugh… Qual é a desse país…? Que horrível…

Ela recuou.

Havia uma bruxa bem ao seu lado, pronta para explicar, com uma feição satisfeita consigo mesma o tempo todo, sem se preocupar com seus sentimentos.

Quem poderia ser?

Exatamente, era eu.

— Há muito, muito tempo, no passado distante, quando um dragão (você), começou seu terrível massacre, houve um país que conseguiu montar uma resistência mais rápido que qualquer outro. Dia após dia, eles fortaleceram suas armas e feitiços e lutaram contra o dragão. Você não se lembra de nada disso, Luciella?

— Nada — disse enquanto andava ao meu lado. Luciella balançou sua cabeça imediatamente. — Até porque, antes de conhecer aquela bruxa, não tive em meu caminho nenhum inimigo digno de ser lembrado, apenas alguns maus olhados.

Resumindo, os ataques das pessoas não tiveram efeito nenhum nela.

— É provavelmente uma história perturbadora, se nós pudéssemos ouvi-la das pessoas que viviam naquela época…

— …… — Nesse momento, Luciella parou repentinamente. — Bem, as pessoas aqui também não parecem se lembrar de mim, então acho que isso vale para os dois lados.

Estávamos paradas em frente a uma livraria.

Posicionados em sua janela estavam as muitas lendas da bruxa Natasha.

…Não estou questionando que elas sejam verdadeiras, mas realmente precisam de tantas assim?

Havia histórias fofas e ilustradas da bruxa e do dragão, destinadas à crianças, e todo o tipo de revistas em quadrinhos destinadas à adultos. A coisa mais estranha era que nenhum dos dragões retratados nas capas dos livros era igual. Eles tinham escamas prateadas, ou vermelhas, ou pretas, e o tamanho e a aparência da besta variava bastante.

— E ainda assim eles se lembravam dela. Todos nesse país se lembram daquela bruxa perfeitamente. — Os olhos de Luciella se estreitaram conforme passava o dedo com cuidado sobre a capa do livro.

A aparência da bruxa Natasha era sempre bem consistente. Uma túnica preta, um chapéu triangular preto e cabelos laranja. Seu visual havia se tornado icônico.

— Olá, boa tarde! Por acaso vocês são turistas? — Uma vendedora colocou a cabeça para fora da loja, talvez por ter nos visto paradas em frente a vitrine. — Oh-hoh-hoh. Você tem um olho muito bom para notar nossa humilde livraria. Imagino que as duas sejam fãs de Natasha? Maravilha! Nem precisam me dizer nada, posso perceber só de olhar para seus rostos! Vocês duas estão praticamente transbordando com a ingenuidade de novos fãs!

Até porque, acho que ninguém iria querer visitar esse lugar se não fosse um fã…

— …Tem algum livro que recomendaria?

— Oh-hoh-hoh. Que coisa estranha de se perguntar. Bem, eu recomendaria todos os livros da loja!

— …… — Estava me sentindo bastante irritada com o exagerado bom humor da vendedora quando Luciella fez a seguinte pergunta.

— Ei, senhora. Quero saber mais sobre esta mulher. Tem algum livro que possa me ajudar?

— Oh-hoh-hoh. Nesse caso, eu recomendo este aqui. É o melhor livro que temos se você realmente quer saber sobre a Lady Natasha.

Conforme ela dizia isso, pegou um livro.

Como ir da falência ao bilhão em um segundo: Um registro dos esforços de Natasha

Luciella jogou o livro no chão.

— Pareço obcecada com dinheiro?!

— Oh, me desculpe. Acho que esse livro é mais direcionado a estudantes avançados.

— O que é um estudante avançado…? — Luciella murmurou.

— Acho que vai considerá-los uma classe especial de fracassados… — expliquei.

Nós duas estávamos fazendo caretas.

A vendedora, por outro lado, parecia completamente despreocupada.

— Para iniciantes, recomendo esse livro.

Ela tossiu, limpando sua garganta de forma forçada, e então nos deu um outro livro.

Um caso de homicídio de dragão: há sempre uma única verdade a ser encontrada

Luciella jogou o livro no chão.

— Quando foi que essa bruxa se tornou detetive?!

— Bem, na verdade, ninguém nunca soube de nada sobre ela depois de ter derrotado o dragão, então… um rumor de que ela havia começado a desvendar mistérios começou a se espalhar…

A vendedora riu enquanto pegava o livro do chão.

De acordo com ela, depois do desaparecimento de Natasha, seus maiores fãs criaram teorias malucas para valorizar a lenda, até a imagem da bruxa se tornar incrivelmente reproduzida.

— Nesse romance, Lady Natasha visita os dias atuais, e a magia mais forte da nossa época não é párea para ela. Os magos de hoje em dia são muito inferiores aos magos da sua época… ao que parece.

— Então, resumindo, é um livro no qual ela é um peixe grande, burro e preguiçoso em um lago pequeno e estúpido. Entendi. — Luciella afirmou com a cabeça.

— Nessa obra é o contrário, os protagonistas viajam no tempo para a época de Lady Natasha, onde eles apresentam à ela a culinária dos dias atuais e vivem em um luxo sem precedentes, por conta de seus conhecimentos modernos e talento artístico.

— Ninguém lê nada que não a envolva?

— Livros vendem bem se Lady Natasha está neles, então…

— Então a maioria de vocês nesse país são completamente apaixonados por ela…?

— …… — De repente, a inabalável vendedora ficou com um olhar distante. — Quando se é uma lenda como Natasha, sua imagem é eterna…

— Em outras palavras, a famosa Lady Natasha era uma personagem de domínio público e podia ser usada por escritores da forma que quisessem.

Ela conseguia ser ridiculamente popular.

— O que está acontecendo…? Quero saber que tipo de pessoa ela era, mas ainda não tenho a menor ideia… — Luciella estava completamente perdida. — Não entendo… Por que as pessoas dessa época tornam todo mundo do passado em brinquedo…?

Para Luciella, que tinha vivido de fato no passado distante e enfrentado Natasha, o tratamento atual dado à bruxa certamente deve ter parecido bizarro. Provavelmente a fazia sentir-se desconfortável em estar cercada por mentiras.

Entretanto…

— A maioria das pessoas vivendo nos dias de hoje não se importam muito com a verdade dos fatos do passado — eu disse, colocando minha mão em seu ombro —, somente os eventos que foram vistos com os próprios olhos são reais para elas.

Não importava como a verdadeira Natasha tinha sido. Se a história era interessante, isso bastava. Precisão histórica claramente não era uma preocupação, então poderiam usar sua imagem como bem entendessem.

— Me pergunto que tipo de bruxa ela era, afinal. — Deixamos a livraria e Luciella resmungou ao meu lado conforme íamos procurar um hotel.

— Qual a sua impressão de Natasha agora? — Me virei para ela.

Depois de pensar por um momento, ela disse:

— Como uma companheira de viagem no tempo para pessoas do futuro que mudaram de sexo e que foi para um universo paralelo para se tornar uma detetive. Uma criatura mítica que foi o tema de todo tipo de histórias.

— Quando você fala assim, faz parecer que os fãs dela aumentaram bastante a história, né…?

— E como… — Luciella parou de falar por um momento e então disse: — Mas recebo o mesmo tratamento em todas as histórias. — Com um tom de voz derrotado, ou como se tudo estivesse claro para ela, concluiu: — Em todas elas, sem exceção, eu sou a vilã.

Nesse momento, sua voz parecia não poder soar mais solitária do que isso.

Luciella novamente não dormiu bem naquela noite.

Não importava o que eu dissesse, ela só sorria e respondia:

— Vou ficar bem depois de uma soneca, — e então passava a noite inteira lendo livros sobre a bruxa Natasha.

Estava procurando algum lugar onde poderia dormir em segurança, mas esse país definitivamente não era o local ideal para ela ficar. Agora que estava em um frágil corpo humano em vez de sua forma original de dragão, não era párea para uma simples sonolência e frequentemente fechava seus olhos e bocejava alto, mas mesmo assim, nunca entrava em seu saco de dormir.

No fim das contas, não importava quantas vezes eu falasse, ela não se deitava na cama, então acabei desistindo.

— …Tenho certeza de que vai gostar do próximo país — murmurei, mais para tranquilizar a mim mesma, conforme me deitava na cama.

— …Isso seria bom.

Sua voz parecia pertencer a alguém finalmente se rendendo ao sono.

No dia seguinte.

O país onde chegamos em seguida era chamado de Terra do Muro.

Há muito, muito tempo, antes de Luciella, a dragão, aparecer nessa região, as pessoas aqui haviam construído um grande muro e, de uma hora para outra, cortaram todo tipo de relação com nações vizinhas, então recebeu esse apelido, mas não havia nenhum traço dele hoje em dia.

Eles diminuíram a altura do muro que servia para intimidar e isolar até que ficasse do tamanho de um portão normal. O portão, que antes era trancado, agora fica sempre aberto.

Era dito que, de todos os países dessa região, esse foi o que mais mudou desde os tempos passados.

No passado, esteve sob controle de um povo conhecido como elfos. Era um país bastante isolado e insular. Uma vez que os elfos não sabiam usar magia, só tinham o muro para os proteger de invasores.

Agora, entretanto, tudo isso era passado.

Hoje, todos os tipos de pessoas iam e vinham pelas avenidas dessa cidade. Havia humanos, elfos, magos, homens-fera, e até mesmo demônios. Todos os tipos de pessoas viviam aqui agora e as barreiras entre as espécies não existiam mais.

Francamente, era realmente um lugar fantástico.

Mesmo para mim, visitando-a pela segunda vez, era fantástica o bastante para me fazer ter a mesma reação pura de outrora.

— Sejam bem-vindos, viajantes! Aqui, peguem isto! — Enquanto andávamos pela cidade, duas garotinhas de cabelos dourados e longas orelhas (elfas) vieram até nós com cookies recém assados. — Nós os cozinhamos na nossa loja! Se gostarem deles, por favor comprem mais de nós, ok?!

Então as elfas desapareceram como uma chuva de verão.

— H-hm…? — Desorientada com o cookie que havia sido entregue a ela de repente, Luciella me olhou desconfiada. — Ei, isso aqui não é super picante, né…?

— É apenas um cookie normal. — Já mastigando quando a acotovelei. — Elas andam por aí distribuindo como propaganda. Não se preocupe.

Eu estava calma, mas Luciella ainda estava confusa.

— Propaganda…? Mas aquelas meninas tinham por volta de dez anos de idade! Está me dizendo que fazem crianças trabalharem aqui?

— Encontrei com essas garotas da última vez que vim aqui, e elas são adultas.

— Huh?

— Elfos crescem devagar. Só com uns 50 anos se tornam adultos de verdade. E é dito que podem facilmente viver por muitas centenas de anos ainda. Já ouvi até mesmo histórias de elfos que chegaram aos mil anos de idade.

— …… — Luciella abriu os olhos, surpresa. — Bom, então, quantos anos elas tinham?

— Trinta, aparentemente.

— Trinta anos fingindo ter dez, huh…? Isso é um pouco demais para mim…

Luciella olhou fixamente para o horizonte.

Não acho que os elfos gostariam de ser julgados por um dragão de centenas de anos fingindo ser uma garota de dezoito, mas não estava muito afim de discutir isso com ela naquele momento.

— Mas não tem muitas espécies longevas assim, né? A maioria das pessoas deste país é composta por imigrantes, certo?

Até onde podíamos perceber olhando a cidade, eram todos homens-fera com grossos pelos, humanos normais (incluindo magos) e demônios abertamente exibindo suas asas e presas. Para um lugar que era originalmente uma terra de elfos, os nativos eram bem difíceis de se encontrar.

Mas isso já era esperado.

— Depois que o muro foi demolido, a maioria dos elfos teve medo de ataques e deixou o país. Como não podem sequer usar magia,  o muro era a única coisa que os protegia, e depois de sua destruição, não tiveram opção senão fugir. Os elfos que estão nesse país hoje em dia são as corajosas almas que decidiram permanecer aqui, ou provavelmente seus descendentes.

— …Então é isso?

— Para se reestabelecer depois da redução populacional, o país recebeu todos os tipos de pessoas. Hoje, é um país próspero, como se pode perceber, mas aparentemente, houveram muitas disputas para chegar ao que é hoje.

Eu só ouvi uma história aqui, outra acolá, então não sei muito sobre o assunto.

— Então você está dizendo que há várias pessoas que me repudiam aqui também? — Luciella soltou um suspiro, e disse: — Então, no fim das contas, não importa aonde eu vá, é a mesma história. Eu devia estar viajando a procura de um lugar onde pertencer, mas a única coisa que sei depois de ir de país em país é que não pertenço a lugar algum.

— ……

Suas palavras pareciam como um ataque a mim por ter dito tão casualmente: “Tenho certeza de que vai gostar do próximo país.”

— Do meu ponto de vista, me parecia não haver lugar mais fantástico que o mundo humano. — Estreitando seus olhos, Luciella assistiu às pessoas vivendo suas vidas na rua. — Depois que saí da minha terra natal, viajei sozinha por muito tempo. Esse foi o motivo pelo qual vim visitar os países dessa região.

E então, em uma voz melancólica, me contou sua história.

— Só queria ser amiga dos humanos.

Sem ser amada por ninguém em sua terra natal, Luciella tinha partido em busca de um lugar ao qual ela pudesse pertencer.

No entanto, sendo bem direta, seu desejo nunca se tornou realidade.

Um motivo era simplesmente porque não havia nenhum país tolerante o suficiente para aceitá-la. Ela podia sentir antes de chegar a algum lugar que não seria bem-vinda.

Ela visitou todos os tipos de países, buscando por um lugar ao qual pertencer, mas não importava onde fosse, não importava quem conhecesse, sua espécie e aparência eram muito diferentes, então não havia ninguém disposto a aceitá-la.

 Longe disso, na verdade. Ela era rejeitada em todo lugar que ia.

— Saia daqui, seu monstro! — Às vezes, as pessoas atiravam pedras e a xingavam com violência.

— Nunca mais pise no nosso país de novo! — Ou então apontavam armas em sua direção e a atacavam com feitiços.

E assim, ela estava sozinha, uma besta solitária.

Nunca sendo bem-vinda em lugar nenhum. Não havia um lugar para ela. No final das contas, o mundo exterior não era nem um pouco diferente de sua terra.

Ela sofreu por muito tempo procurando por um lugar que a aceitaria como ela era.

Porém, nunca o encontrou.

Depois de viajar muito, tornou-se claro que não importava o quanto sofresse, não havia outra escolha senão viver uma vida solitária. Naquela época, as pessoas vivendo naquela região jamais seriam capazes de aceitá-la.

Ninguém a amava e ela não tinha ninguém para amar.

Estava certa de que essa não era sua época.

Por fim, desistiu de tudo.

Então, como todos sabem…

Como as lendas contam…

Na floresta…

Ela não podia fazer nada a não ser ficar lá, sozinha, para sempre.

— Eu tentei fazer amizade com os humanos muitas vezes, mas minhas palavras não eram capazes de alcançá-los. Todas as minhas tentativas de ser legal falharam — riu friamente do meu lado.

A única razão pela qual Luciella havia retornado para essa região tantas vezes era porque queria fazer amizade com os humanos. Só por isso, continuava visitando suas cidades, tentando entendê-los melhor.

Mas não conseguia compreendê-los e eles também não a entendiam.

Pela perspectiva das pessoas, ela não era nada além de um monstro.

Da perspectiva dela, as pessoas eram simplesmente criaturas possuídas pelo medo, que vinham atrás dela com suas armas prontas para atacar.

— Só ela parecia me olhar de forma diferente.

A bruxa Natasha.

Só ela conseguia lutar com Luciella de igual para igual, sem medo. Aos seus olhos, Luciella provavelmente viu uma humana que estava na mesma situação que ela.

— No final, nunca cheguei a descobrir o que ela pensava. E mesmo depois de irmos àquele país ontem, ainda não entendo nada sobre ela.

Acho que é porque todas as lendas sobre ela foram distorcidas e se tornaram inverídicas…

— O que pensa em fazer depois de saber tudo sobre Natasha?

— O que pensava em fazer depois de saber tudo sobre mim?

— Uh… Um, bem, não estava pensando em fazer nada. Só estava interessada em você.

Não é como se pudesse contar a ela que só fiz isso porque senti a oportunidade de fazer uma grana…

— Mesma coisa, então. Só estava interessada nela.

— ……

Olhei para ela, em silêncio, e ela sorriu de leve para mim.

— Tinha uma esperança muito pequena de que ela pudesse ser como eu e quisesse ser minha amiga…

Mas o fim que esperava Luciella e Natasha acabou por ser quatrocentos anos de silêncio.

— Agora acho que nunca vou saber o que ela estava realmente pensando.

Acho que ela sentia como se Natasha a tivesse deixado para trás, como se tivesse sido abandonada.

Os eventos do passado não importavam, sua verdadeira motivação não tinha sido nada mais do que a vontade de um dragão solitário em fazer amigos. A aparência dela no passado não importava, agora ela era apenas uma triste garota.

— Você cuidou bem de mim. — Ela disse. Luciella de repente parou. — Já chega. Aparentemente, mesmo depois de quatrocentos anos, o mundo ainda parece me dizer que o melhor para mim, é ficar sozinha. Sou grata por você ter viajado comigo até então. Mas agora já chega.

— ……

— Estou certa de que tenho sido um fardo. E quero fazer algo para demonstrar minha gratidão, mas infelizmente, não tenho nada. Como pode ver, estou sem dinheiro nenhum. Por favor, considere as muitas histórias que te contei em nossa jornada como souvenirs. Sem dúvidas você conseguiria fazer uma grana ao transformar minhas experiências em um livro ou algo do tipo.

— Estou certa que sim… — respondi, vagamente. — Mas considerando as roupas, refeições e abrigos que paguei… Bem… você entende…?

— Huh? O que quer dizer? Está tentando me dizer que isso não é o bastante? Você pretende tomar ainda mais de mim mesmo sabendo que não tenho nada?!

— Não, não. Eu jamais faria isso! É só que, se nós partirmos assim… Compreende? Me parece que estaria faltando alguma coisa… Oh-hoh-hoh!

Eu ri. Talvez, pela perspectiva de Luciella, eu parecesse estar com uma expressão má.

— Huh? Então o que foi? O que você quer? — Ela me perguntou muito, muito zangada.

— Não quero nada de você — respondi, rapidamente —, mas, antes de nos separarmos, você me acompanharia para mais um passeio de compras?

Então fui embora a puxando pela mão.

Porque o centro de uma rua lotada não era o local ideal para uma despedida.

— …Caramba! Você realmente gosta de livros.

Levei Luciella quase à força pela mão e o lugar onde nós finalmente chegamos era uma livraria em um canto da cidade. Não era bem uma loja tradicional, era só velha mesmo, e suas prateleiras estavam alinhadas com livros que provavelmente haviam sido novos em algum momento.

Era uma construção bastante simples, o tipo de livraria que, sendo um pouco maldosa, era insignificante.

Você pode dizer que essa loja era o exato oposto da livraria que visitamos ontem.

— Se vamos nos separar, pensei que aqui seria apropriado — disse calmamente.

— Não tem charme algum… — Parecendo enojada, Luciella entrou na loja. — Não é como se eu fosse aprender algo sobre aquela bruxa em um lugar como esse.

Sua objeção era inexpressiva, como se já tivesse desistido de aprender sobre a bruxa Natasha.

Ou talvez tivesse desistido de viver nesse país. Ou desistido dos seres humanos por completo.

— …… — Só me mantive em silêncio e caminhei atrás de Luciella conforme entrávamos nos estreitos e apertados corredores de estantes de livros, que se envergavam como se quisessem nos abraçar.

Volume atrás de volume de velhos livros de referência mofados estavam alinhados nas prateleiras. Diferente da loja de ontem, não havia um único romance do tipo que seria ideal para passar o tempo. Essa livraria estava lotada de livros duros e formais.

Pode-se dizer que era uma lojinha escondida, na qual nenhum turista normal entraria.

Mas também pode-se dizer que era uma loja tão sem graça que até mesmo as pessoas locais não estavam interessadas. Tinha sido completamente esquecida.

E nem era um lugar desagradável, mas claro, também não tinha nenhuma elegância. Era o tipo de loja que, se um cliente entrasse, em seguida sairia.

— ……

Dentro daquela loja desinteressante, Luciella, que estava andando na minha frente, de repente parou.

Ela travou. Seu olhar havia sido capturado por algo nos fundos da loja. Pela vendedora solitária que tinha saído de um aposento lá atrás.

— Oh, olá!

A velha mulher sorriu de forma amável e falou como se soubesse tudo sobre nós:

— Vocês não são daqui, são?

Como você sabe?

Não precisei perguntar. Sabia imediatamente que ela sabia.

Ela sabia que eu era alguém que tinha vindo de longe.

E sabia exatamente quem a garota na frente era.

— …Você é…

E Luciella também, da mesma forma, deve ter reconhecido a mulher à sua frente. Ela tinha cabelos brancos puros que tinham perdido toda sua cor. Seu rosto estava cheio de rugas e mantinha pouquíssimo de sua aparência quando jovem. Suas roupas tinham perdido toda a elegância que um dia tiveram.

Em pé a nossa frente havia apenas uma senhora normal, nada mais, nada menos.

Porém, no momento que Luciella a avistou, entendeu quem era. Ignorando qualquer tipo de lógica, ela sentiu, intuitivamente.

— Tenho certeza que te disse ontem: “Você vai gostar do próximo país” — disse.

Aquelas palavras não tinham sido mentira. Às disse porque genuinamente acreditava nisso.

Porque vivendo aqui neste país estava a famosa bruxa Natasha.

Isso aconteceu da primeira vez que vim a este país.

Uma senhora misteriosa tinha aparecido na minha frente e me contado uma história estranha.

Era uma lenda que vinha sendo passada desde os tempos antigos sobre um dragão que desolava a região e uma bruxa que o erradicava.

A mulher estava muito mais bem informada do que qualquer livro que já tinha lido, e me contou a história como se tivesse vivido naquela época e visto os eventos acontecerem. Conforme ela recontava a lenda, sua história era muito mais vívida do que as escritas nos livros.

— …Por que sabe tanto sobre isso?

Inclinava minha cabeça, questionando, e a senhora sorria.

— Porque sou Natasha, é claro.

Ela dizia isso como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Depois de prender o dragão, a bruxa Natasha partiu por um tempo em uma jornada. Desapareceu e passou um tempo sozinha. Viu o mundo e experienciou todos os tipos de culturas.

E então, não muito tempo atrás, veio morar na Terra do Muro.

Desistiu da vida de bruxaria e se tornou uma pessoa comum. Assim, ela aproveitava uma vida pacata aqui neste país.

Embora a maioria das pessoas tenha fugido após a intensa batalha contra o dragão, deixando o país devastado para trás, como ela havia me contado.

Então com o dragão Luciella aprisionado, ela botou a mão na massa e reconstruiu o país. Destruiu o grande muro e removeu as restrições para fazer deste um lugar onde todas as espécies e diferentes tipos de pessoas pudessem viver juntos.

Aparentemente, Natasha não pretendia se esconder, mas se perdeu no meio da multidão quando o país abriu suas fronteiras. Pessoas de todos os lugares devem ter pensado que ela tinha desaparecido.

— Você sabe, quando olho para trás e me lembro daquela época, meu coração dói.

No meio da sua história nostálgica, ela me disse:

— Naqueles tempos, não havia nada que eu pudesse fazer além de enfrentar o dragão e o aprisionar. Depois de tudo o que aconteceu, o dragão nunca mais seria perdoado. Então eu tinha de fazer isso, ou o mundo seria destruído em uma guerra. Porém, — acrescentou — não acho que o dragão fosse mal. Questionei se ele não queria, na verdade, fazer amizade com nós, humanos. Talvez só quisesse viver conosco.

Por esse motivo, Natasha não matou o dragão. Em vez disso, o aprisionou em uma rocha. Ao mesmo tempo, colocou um feitiço que transformaria a anatomia do dragão quando acordasse, de forma que não conseguiria mais pisotear e destruir cidades inteiras. Claro, a magia necessária para transformar um dragão adulto levaria bastante tempo para fazer efeito, ela disse. Cerca de quatrocentos anos, para ser mais exato.

— Não sei se o dragão queria que isso acontecesse ou não. Não era nada mais do que um palpite, mas, de alguma forma, pressentia que o dragão queria virar um humano.

Elas nunca trocaram uma palavra e só haviam se encontrado em batalha.

Entretanto, de algum jeito, seus corações deviam ter se comunicado.

— Senhorita Bruxa Errante, você acha que conseguiria perguntar ao dragão suas intenções reais?

Acabou que Natasha havia me levado para dentro da loja com a promessa de me contar uma história dos tempos antigos só para me fazer esse pedido. Sempre fui uma tola em cair na lábia de estranhos.

— Se estiver pensando em uma recompensa, posso te recompensar muito bem. Tenho economias suficientes com as quais posso viver em segurança, sem me preocupar com dinheiro até morrer.

Natasha me tentou com palavras tão doces.

— …Onde está o dragão?

E eu caí facilmente na tentação.

Porém, tinha uma pergunta em minha mente.

— Você realmente quer esse dragão, mas… por quê? Até onde entendi ouvindo as lendas, a criatura foi uma grande inconveniência aos humanos. Uma verdadeira dor.

— Você está certa…

Natasha respondeu minha questão francamente, dessa forma:

— Acho que é porque aquele dragão tinha o mesmo olhar em seus olhos que eu.

A história que ela me contou era de uma besta solitária sendo perseguida em sua terra natal, expulsa, e então andando pelo mundo, procurando por um novo lar. Era a história triste de alguém que, no final, não tinha escolha senão viver sozinha na floresta.

No fim das contas, do começo ao fim, ambas as histórias eram iguais.

A história do monstro, depois de tudo a ser considerado, era a mesma história de Natasha.

E foi exatamente o que aconteceu com Luciella.

— Eu nasci neste país, sabia? Ainda que hoje esteja velha e meu cabelo tenha perdido completamente sua cor, há muito tempo, ele tinha uma linda coloração laranja brilhante.

Natasha penteou seu cabelo, o tirando de suas orelhas. Eram longos e delicados, característicos de uma elfa. Ela tinha nascido em um país de elfos, porém fora concebida da união entre um elfo e um humano, e tinha sido detestada e temida pelo seu próprio povo.

Mais importante, dada sua aparência incomum, nem elfa e nem humana, não era aceita nesse país e em nenhum outro.

E então, pela maior parte do tempo, ela viveu sozinha.

Essa era a mulher cuja casa na floresta havia sido cercada, há quatrocentos anos, por emissários bajuladores de todas as nações fronteiriças, desesperadamente implorando para que ela exterminasse o dragão.

Naquele tempo, Natasha pensou que aquela poderia ser sua chance. Tinha certeza de que se os colocasse em dívida com ela, finalmente poderia viver bem com os humanos.

Entretanto…

— Percebi quando olhei em seus olhos. — Natasha pôs sua mão na cabeça de Luciella. — Sabia que você também estava sofrendo, assim como eu. Podia ver isso no seu olhar — continuou. — Eram os olhos de uma pessoa torturada pela solidão.

Então depois de Natasha ter aprisionado o dragão, passou os quatrocentos anos seguintes reconstruindo este país, sua terra natal.

Ela havia planejado o país de modo que se tornasse uma cidade fantástica, que aceitasse pessoas de todas as espécies.

Mesmo com a existência física de Natasha tendo sido apagada das memórias das pessoas que viviam aqui, mesmo que o dragão fosse esquecido, aceitos agora como nada além de uma lenda, Natasha nunca se esqueceu, e continuou esperando por quatrocentos anos.

— Você realmente é bem boba…

Luciella colocou a mão em cima da própria cabeça, pegou a mão enrugada de Natasha e a apertou contra sua bochecha, como se quisesse provar com sua pele humana, de que não se tratava de um sonho.

— Você passou por tudo isso só por mim? Me esperou até ficar toda enrugada assim? Que boba… — disse ela.

Em resposta, Natasha sorriu e acenou com a cabeça, confirmando.

— Não fiz isso só por você, — respondeu gentilmente — fiz isso tudo por mim mesma.

Por si mesma, e por sua semelhante: Luciella.

 

— Hmm, algo não me cheira bem…

Em uma certa editora de livros.

Depois dele ter finalizado a leitura do manuscrito que eu havia trazido para dar aquele dia como encerrado, o editor fez uma cara azeda e pensou consigo mesmo por um tempinho, e então jogou o manuscrito na mesa e gesticulou fortemente com as mãos, dizendo:

— Ok, me escute. Reviver o dragão no mundo quatrocentos anos depois é um roteiro interessante, não é? Acho que isso é bom, mas o ponto é… Por que ele é uma bela garota? O dragão seria melhor como um rapaz, certo? E você tem a bruxa Natasha como uma senhora qualquer, mas isso também já é um pouco de exagero. Quer dizer, ela morreu faz tempo, certo? E ter a protagonista como uma jovem bruxa… Não sei, não…

— Uh-huh…

— Se nossa editora for publicar isto, antes de tudo, o dragão tem que parecer como se parecia no passado, não como uma linda menina, e você também tem que fazer Lady Natasha viajar no tempo, do passado ao presente. E a protagonista não pode ser uma garota; coloque em seu lugar um homem bonito. E coloque também pelo menos umas três meninas que serão as heroínas de suporte. E, não preciso nem falar, todas devem ser perdidamente apaixonadas pelo protagonista.

— Espere, mas isso é completamente fora da realidade…

— Veja bem, o manuscrito que você me trouxe não vai vender, ok?

— ……

— Já tiveram tantos romances em torno da bruxa Natasha que as pessoas já estão saturadas… Tudo o que sugeri é o que os leitores de hoje realmente querem ler…

— ……

Dizem que a verdade é mais estranha que a ficção, mas na realidade, se a verdade é muito estranha, ela se torna indistinguível da ficção. Visitei diversos editores e os deixei ler meu relato dos eventos recentes, os quais resumi em um romance, mas não houve uma única pessoa que apreciou a história.

Era um conto digno de aplausos, mas que só podia ser compartilhado entre duas pessoas.

— Vejamos. E se fizermos a protagonista como uma reencarnação da bruxa Natasha. Então ela terá o poder de derrotar o dragão logo no início. Que tal? Isso é novo, não é?

— Não, na verdade, acho que esse roteiro já está mais batido que massa de pizza.

Depois de agradecer superficialmente, peguei meu manuscrito e saí da editora.

Muitos dias se passaram desde que me separei de Luciella.

O tempo passava rápido como sempre na Terra do Muro, uma cidade onde havia humanos, elfos, magos, homens-fera e até mesmo demônios. Onde não havia barreiras entre as espécies, um lugar onde tudo parecia novo e, ao mesmo tempo, nostálgico.

— ……

Conforme ia em direção ao portão e retornava à minha solitária jornada, parei de repente.

Avistei uma pequena livraria.

Era uma lojinha aconchegante que não parecia ser o tipo de lugar no qual a maioria dos turistas se interessaria em visitar. O tipo de loja pequena e sem graça que até os moradores se esqueceram.

Adentrei.

Havia um aroma nostálgico no ar.

Nos fundos da loja, uma senhora com uma expressão gentil estava sentada educadamente com suas pernas sob ela, esperando com um sorriso.

— Oh, seja bem-vinda!

Antes que ela pudesse continuar, eu disse:

— Aqui, tome! — E dei a ela o monte de papéis que era meu manuscrito.

— ……? — Enquanto ela o segurava, a mulher inclinou sua cabeça curiosamente. — O que é isso?

— Sua loja não parece ser destinada a amantes da leitura, então resolvi fazer uma doação — respondi francamente.

Como um romance, provavelmente não é muito interessante, mas aposto que é perfeito para uma loja cheia de livros enfadonhos.

A mulher olhou o manuscrito e imediatamente me retornou o olhar.

— …Você está vendendo isso?

— Não. Por favor faça o que quiser com isso. Pode jogar fora ou vender, eu não me importo. Está nas suas mãos.

Só quero que você não se esqueça.

Não se esqueça de que alguém por aí sabe que vocês duas estão vivendo aqui, mesmo que todo o resto não se lembre de vocês e a história seja passada como mera lenda entre as pessoas dessa região.

Não se esqueça que mesmo quando, um dia, uma de vocês chegar ao fim de sua vida, a remanescente não deve retornar à solidão.

…E assim por diante.

Suprimindo pensamentos tão sentimentais lá nas profundezas do meu peito, eu disse brincando:

— Bem, a recompensa que você me deu foi um pouco grande demais, então queria retribuir um pouco, é só isso.

— …Entendo — respondeu Natasha, segurando o manuscrito como se fosse algo precioso. — Nesse caso, tomarei conta disso aqui.

Aliás…

— …Onde Luciella foi?

Meus olhos procuraram pela loja, mas não conseguiram encontrar a outra protagonista: a dragão Luciella.

Ouvi que depois de ter se separado de mim, Luciella havia começado a trabalhar na livraria de Natasha, mas…

Eu não a vejo.

— Ela está bem aqui.

Natasha apontou para seu colo.

— ……

Realmente, lá estava Luciella.

Ela tinha colocado sua cabeça no colo de Natasha, fechado seus olhos, e parecia estar dormindo pacificamente.

— …Ela parece confortável.

Tão confortável que sussurrei.

— …Sim. — Natasha acenou silenciosamente conforme acariciou os cabelos de Luciella.

Quando tocou seu cabelo, Luciella murmurou calmamente e virou seu rosto para cima, mas não acordou.

Tenho certeza de que ela não vai acordar por um tempinho ainda.

Nesse exato momento, ela está num lugar onde pode dormir em segurança.

Como uma criança depois do pai ler uma história de ninar, Luciella estava dormindo profundamente.

 

 


 

Tradução: GTC

Revisão: William Kennedy & Nero

 

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